Como podemos expressar ideias universais presentes nos indivíduos sem a noção clássica de Homem?
Em abstrato, igualdade não quer dizer muita coisa quando aplicada aos homens.
Na tradição liberal, igualdade remete às leis: nobre ou plebeu, rico ou
pobre, gozar dos mesmos direitos elementares. Essa concepção de
igualdade provavelmente vem do cristianismo, segundo o qual todos os
homens — o ladrão, o médico, o estuprador, o professor — são feitos à
imagem e semelhança de Deus. Isso torna os homens igualmente dignos num
nível elementar. Após a II Guerra, esse sentimento de igualdade de
dignidade foi laicizado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Que hoje sejamos treinados para ouvir “igualdade” e pensar em dinheiro é preocupante.
Nem o genocídio dos judeus europeus, que tinham dinheiro para levar uma
vida de classe média antes de perder os direitos e a dignidade, foi
capaz de ensinar o quão mesquinha é essa concepção de igualdade.
Igualdade como uniformidade
Os que clamam por igualdade pensando em dinheiro têm em vista a uniformidade das riquezas. Uma outra uniformidade pela qual se clama é a uniformidade de pensamento. Em nosso tempo, esta é uma demanda premente da parte dos progressistas:
reparemos que, de acordo com a propaganda, algo tão subjetivo quanto um
sentimento — o ódio — é letal em si mesmo. Nunca se empreendeu, na
história ocidental, o projeto de extirpar um sentimento da humanidade.
Ao contrário, sempre lidamos com a ideia de continência e cultivo
pessoal: as tendências existem, os sentimentos existem, mas os homens
são falíveis. Humo sum, humani nihil a me alienum puto: “Sou um homem, não acho que nada de humano seja alheio a mim.”
Este é o mote clássico. Hoje, é difícil encontrar quem tenha a
humildade de dizer em público que sente ódio, pois é um mero homem, um
mortal aquém de seres divinos.
Então hoje vivemos numa época em que é normal alguns criminalizarem um sentimento humano, imputando-o somente a outros. Fica
tácito que eles, os progressistas, não odeiam ninguém. Não carregam
essa mácula que outrora se supunha tingir toda a humanidade.
E com a campanha educativa contra o ódio pretendem acabar com a criminalidade. Todo
homicídio pode ser explicado através de algum preconceito. O
preconceito, a seu turno, é fomentado pelo discurso de ódio. Uma piada
pode ser enquadrada como discurso de ódio. Resultado: piadas matam. Para
acabar com homicídios não é mais necessário fortalecer a polícia, mas
sim a doutrinação que os cidadãos recebem a fim de não sentirem mais
ódio. Tem aquele bordão feminista que manda ensinar os homens a não
estuprarem — seria um bordão, se não pretendesse com isso substituir a
ação policial e a prevenção da parte da mulher. Parece que, se os homens
forem suficientemente doutrinados, aí, e só aí, o estupro será
combatido.
A uniformidade do pensamento nos está sendo apresentada como essencial à vida em sociedade.
O caso da criminalidade é batido há anos. Mas
agora vemos também a mesma concepção se transpor para a ciência:
discordâncias acerca da maneira como a pandemia está sendo gerida devem
ser tachada de fake news, e fake news deve ser crime. Se discordâncias forem expostas por uma pessoa, a sociedade inteira corre o risco de virar antivacina terraplanista. Assim como as feministas diziam que uma piada mata, os famigerados especialistas hoje dizem que fake news matam.
O
curioso é que terraplanistas existem há um bom tempo, inclusive
associados ao movimento antivacina. Entendia-se, até pouco tempo atrás,
que desinformação se combate com informação. Nem todos os terraplanistas
são passíveis de serem dissuadidos, mas não se trabalhava com a
necessidade de uniformizar totalmente o pensamento de cada indivíduo na
sociedade. Trabalhávamos, em vez disso, apenas com a formação de
consensos e com a noção de maioria. A maioria era mais poderosa, mas os
direitos das minorias deveriam ser respeitados. Bastava que os terraplanistas fossem minoria, e tudo estava certo. A sociedade não ia desmoronar por causa deles.
Hoje, não. O a própria ideia de direito de minoria foi esvaziada e virou lacração. Se
você, ou um cientista renomado, ou um doidinho, expressarem ceticismo
quanto à vacinação de covid, tudo se passa como se a dúvida fosse
contagiosa e as pessoas fossem todas morrer por causa disso, deixando de
tomar a vacina salvadora.
Molda-se uma sociedade que não aceita senão a uniformidade do pensamento.
Gênero humano
Existe outra razão para ser difícil encontrar quem proclame: Humo sum, humani nihil a me alienum puto. A razão é que está difícil dizer-se homem e ser entendido.
Com cirurgias linguísticas, a ideia de ser um homem vem se tornando cada vez mais embotada. Em
latim, homo vale para homem e para mulher; o homem do sexo masculino
era o vir, que veio a dar em varão em português. Em grego também havia
um substantivo humano, ἄνθρωπος (anthropos), para designar o homem sem especificar o sexo.
As palavras em português derivadas do grego que têm a ver com a
humanidade têm ánthropos na composição: antropologia, antropocentrismo,
filantropia… As palavras relativas ao homem do sexo masculino usam “andrós”, o genitivo de ἁνήρ (anér): misandria, poliandria, andrógino…
Em um português transigente com ambiguidades, homem às vezes é entendido como sinônimo de varão, e às vezes é entendido como espécime do gênero humano.
Mas quem disse que hoje podemos falar em gênero humano e ter a certeza de ser entendidos? Martelam-nos que existe um espectro de gênero: gênero masculino, gênero feminino, gênero neutro, gêneros não-binários. Por causa disso inventaram “todes”, para abranger quem não se identifica nem com homem, nem como mulher.
Se
cada indivíduo pode pertencer a um gênero diferente, e se “homem” é só
mais um gênero, como poderemos expressar a ideia clássica de Homem sem
cair em abstrações coletivistas?
Ora, muito já se fez contra os homens em nome da Humanidade – muita coerção da atual pandemia se faz em seu nome. Mas este é um problema num nível mais elementar: como podemos expressar ideias universais presentes nos indivíduos sem a noção clássica de Homem? As frases: “O Homem é racional” e “A Humanidade é racional” são diferentes. A primeira é
muito mais clara. A segunda pode soar como “A Rússia é uma potência
bélica”, que não faz de nenhum russo, em particular, uma potência
bélica. Além disso, sacrificar russos para salvar a Rússia faz perfeito
sentido. Que espanto haverá, então, quando se propuser a eliminação de alguns milhões de homens (chamados eufemisticamente de “população”) para salvar a Humanidade?
Por Bruna Frascolla - GazetadoPovo
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