Num parágrafo lindo (Os
Prêmios, no capítulo “E” dos monólogos de Pérsio), Julio Cortázar admira o
fato de a tinta de um tinteiro, se adequadamente espalhada ao longo de folhas
de papel, com o auxilio de uma pena de ponta bem fininha, se transformar em O Mundo como Vontade e Representação.
Quando li esse trecho, me lembrei do outro exemplo
cortazariano. Em O Jogo da Amarelinha (cap.
64), o personagem Oliveira admira a mestria de um pintor de calçada, aqueles
caras que numa rua de Paris usam giz colorido para criar belos quadros no
pavimento. E Oliveira comenta que os transeuntes que botam moedas na caixinha
do artista não estão pagando pelo resultado visual, mas pelo fato de que o
rapaz está trabalhando:
Na verdade, essas pinturas não se apagam nunca. Mudam de rua ou de cor, mas já estão prontas em uma mão, uma caixa de pedaços de giz, um astuto sistema de movimentos. A rigor, se um desses rapazes passasse a manhã agitando os braços no ar, receberia dez francos com o mesmo direito que lhe cabe quando desenha Napoleão. (trad. BT)
Quando comecei a usar computadores (o primeiro que usei foi em 1991; o primeiro que comprei foi no ano seguinte) entrei em contato com o conceito de “salvar” um texto. Para mim, isto correspondia a tirar uma folha de papel da máquina-de-escrever e guardá-la em segurança na gaveta, pronta, inviolável, fiel a si mesma até mesmo nas linhas canceladas com “xxxxxxxxx”. Era assim que eu visualizava o processo: dentro do disco-rígido de 64 Mb (o que eu usava na época, num PC 386) havia minha paginazinha de Word, igualmente pronta e inviolável.
Aos poucos, fui aprendendo que não é bem assim. Eu vejo no monitor uma página branca coberta de letras pretas, onde vou digitando, e novas palavras aparecem, organizadazinhas como as da máquina de escrever, na fonte Calibri 11, que estou usando no momento. Para mim, esta página aqui tem uma existência tão física quando a lauda de papel Chamex escrita pelos martelinhos da minha saudosa Olivetti.
É assim – e ao mesmo tempo não é bem assim.
Vamos pensar na fotografia, só para pegar outro exemplo.
A foto digital não é a mesma coisa que “uma foto de papel guardada numa gaveta”. O arquivo que mostra a imagem no meu monitor é apenas um conjunto enorme de instruções microscópicas ensinando a recompor visualmente a foto no instante em que eu abro o arquivo.
Não existe foto. Existe no meu computador um programa, que acabei de ativar, dizendo: “Prepare um espaço retangular de X por Y pixels... Em tais e tais pontos, coloque um pixel azul... Nesses outros, pixel amarelo... branco... preto... cinza... vermelho...” E a foto se recompõe, como se estivesse sendo criada pela primeira vez. Cada vez que abrimos o arquivo, e ativamos esse programa, o programa produz a simulação. Quando desligamos, a simulação vai embora para sempre, e o programa se recolhe a sua prontidão muda.
Quando Cortázar diz que o retrato de Napoleão já está de certa forma prontinho-da-silva nos braços do desenhista e na caixa de giz, é ao programa que ele se refere.
Quando botei o pé pela primeira vez na rápida correnteza da Internet (em 1994) comecei a ter os primeiros vislumbres dessa idéia de que o Mundo em que vivemos é uma representação visível de processos, programações, cálculos e produção de efeitos especiais. Ou seja: o mundo é um videogame.
Schopenhauer se referia à “Vontade” que impulsiona toda a matéria do Universo a produzir a “representação” material desse impulso. Essa representação consiste em variadas formas que dependem da matéria usada, da função a que se destinam, do entrechoque de forças que pode consistir num enfrentamento ou numa harmonia.
Como se a Vontade quisesse se exprimir por meio de Frédéric Chopin e isso resultasse num tipo de música, e ao se exprimir através de Richard Wagner resultasse em outro. O compositor é, ao seu modo, um instrumento, um filtro, um conjunto de possibilidades e de limitações. Quando a Vontade se manifesta por meio de cada um deles, os resultados têm que ser diferentes.
Fernando Pessoa, a quem a leitura dos gnósticos não era estranha, dizia que “Deus é o Homem de outro Deus maior”. E o Homem pode ser o “carinha”, o avatar de um Homem maior que se situa um degrau cósmico acima deste em que nós estamos, e cada um de nós é um desses carinhas que está sendo jogado no Videogame Megafísico de alguém.
Ou seja: talvez não exista um Deus onipotente, onisciente e onipresente, mas exista alguém indubitavelmente superior, que elaborou o programa que nos cria, e gerencia esta simulação que é o Mundo. É outro patamar.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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