segunda-feira, 22 de março de 2021

Ana Claudia Quintana: a médica que prescreve poesia na lida diária com a morte

 


“Suspiro
Um minuto de silêncio:
Preciso ouvir meu coração”
– Cláudia Quintana

Despedida
O que sei é que amanhã vai ser dia de sol
Não importa a dor que anoiteça hoje,
Amanhã vai acordar uma dor ensolarada.

Pela janela chega a luz do meio dia
E nos teus olhos vejo a janela e a luz
Eu te reconheço, apesar de tão diferente
Teus olhos são como o sol.

E amanhã teus olhos vão iluminar os dias
E todo dia de sol me lembrará teus olhos.
Cláudia Quintana

Todos são portadores de felicidade.Uma pena notar que boa parte da humanidade ainda é assintomática.

A médica que prescreve poesia na lida diária com a morte

por Paulo Hebmüller/ Jornal da USP

Um paciente alcoólatra, vítima de cirrose e câncer, com a barriga inchada pela doença e a pele tão amarelada a ponto de a estudante de Medicina que foi visitá-lo fazer a comparação com a cor de um canário. Muitos anos depois, ainda é no seu Antônio, o paciente que lhe coube entrevistar no Hospital Universitário (HU) da USP, que a médica Ana Claudia Quintana Arantes identifica o ponto de partida para sua trajetória na área de cuidados paliativos – uma disciplina pouco difundida e que continua cercada por preconceitos no Brasil.

Angustiada porque seu Antônio não conseguia contar sua história – as dores eram grandes demais –, a então terceiranista da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) procurou o professor para saber se havia algum remédio que pudesse aliviá-lo. “Ele fez uma cara de irritado e disse: ‘Eu já tinha dito que era um paciente terminal. Você sabe o que é um paciente terminal?’ Eu disse que sim, mas que ele estava com dor. Aí o professor falou que não tinha nada para fazer”, conta Ana Claudia. “‘Não? Ele está morrendo de dor. Não tem nada para aliviar a dor agora?’ Aí ele respondeu que não, que se eu desse o remédio para dor o fígado não aguentaria. Eu perguntei: ‘Mas você não está me dizendo que não tem mais jeito? Que diferença faz salvar o fígado dele porque não demos analgésico?’ Bom, tomei uma baita de uma cravada…”

Cuidados paliativos não são abandono; pelo contrário, nós dobramos a escala do paciente.

É com base em histórias como essa que a médica acredita que sua opção pelos cuidados paliativos “veio pela dor”. Aliás, diz, “a maior parte dos profissionais que trabalham com isso deve a escolha à vivência de uma situação difícil”. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os cuidados paliativos são uma abordagem que melhora a qualidade de vida do paciente e de sua família em caso de doenças que ameacem a continuidade da vida. Eles incluem a avaliação e o controle de forma impecável não somente da dor, mas de todos os sintomas de natureza física, social, emocional e espiritual.

Em outras palavras, os cuidados paliativos focam o conforto e o bem-estar do paciente e dos familiares quando se sabe que a doença não responde mais aos tratamentos convencionais e levará ao desfecho inevitável. Eles representam o contrário da obstinação terapêutica, em que todos os recursos tecnológicos são utilizados para manter a sobrevida – num quadro que, não raro, se traduz numa pessoa inconsciente cujas funções orgânicas só se sustentam porque ligadas a aparelhos. É por essa razão que profissionais de várias correntes defendem que a obstinação terapêutica – ou distanásia – nada tem a ver com prolongamento da vida, mas sim com mero adiamento artificial da morte, causando ainda mais sofrimento ao paciente e à família.

Enquanto nos Estados Unidos existem mais de dois mil programas de cuidados paliativos, no Brasil eles são pouco mais de 30. É bom, entretanto, não confundi-los com as estratégias de “humanização” apregoadas pelos grandes hospitais, alerta a médica. “Humanização é aparência, uma coisa ligada ao discurso corporativo. Os cuidados paliativos trazem humanidade”, defende. “Não se pode pensar num profissional da área que não seja uma pessoa muito boa no que faz. Tem que buscar o melhor em termos de formação, de conhecimento técnico e de atualização, mas tem que ter o coração envolvido.”

“O estado de amorosidade do ser humano deveria se tornar algo como a temperatura ou o pH do sangue: perene, necessário ao bom funcionamento de todos os nossos sistemas, internos e externos.”

Ana Claudia vai lançando suas sementes para tentar envolver mais corações. Formada em 1993, fez residência em Geriatria e Gerontologia no Hospital das Clínicas da FMUSP, pós-graduação em Intervenções em Luto pelo Instituto 4 Estações de Psicologia e especialização em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium e Universidade de Oxford, na Inglaterra.

Em 2007, criou em São Paulo, ao lado de três colegas, a Casa do Cuidar, organização voltada para a prática e ensino de cuidados paliativos. “Está cheio de gente morrendo mal”, justifica, e avisa: “quando chegar a minha vez, quero alguém que me cuide direito, porque eu vou dar trabalho”

“[…] sou mulher feita de poesia. …, nasci tem pouco tempo, depois de perceber que a vida só precisa fazer sentido do lado de dentro. E do lado de dentro, sou poema. Nas horas vagas sou médica, e muitas vezes chego a pôr em receituário as orientações de tratamento complementar de poesia para meus pacientes.” – Claudia Quintana

Linhas pares, de Claudia Quintana

Trabalho, por sinal, é o que não falta a esta leonina de 43 anos que se realimenta lendo e escrevendo. Seu blog Prescrição de Poesia (Pérolas da Ana) é a origem do livro de poemas Linhas Pares (Scortecci Editora, 2012).

O volume, ela assina como Claudia Quintana – poeta “tão mais doce e feliz do que a doutora Ana” –, numa apropriada coincidência de sobrenome com Mario Quintana, um de seus autores preferidos.

“Assim, nos pensamentos vagueantes das reflexões sobre a vida e a morte, fui desenhando meu próprio horizonte de letras combinadas com roupa de domingo: a poesia. Olhando para as dores de alma, para os medos humanos e desumanos, para a coragem da fragilidade e para o reencontro do amor pela vida é que me engravido de versos e vou parindo a poesia pelos dias feitos de dias. Espero que vocês gostem dos pares de linhas que deixo de presente por aqui, nessa existência tão breve. Se existo, é porque alguém me vê e só escrevo, porque alguém me lê.

As palavras encontram seu poder quando chegam ao lugar que devem estar. E podem ser carinhos. De longe, os dedos escolhem as letras para versos ou prosas, mas é na pele que esses toques descobrem o que querem dizer. As palavras podem tocar a pele de leve, dando arrepios. Podem aquecer o peito e despertar um sorriso esquecido. Podem ser massagem relaxante ou um susto. Mas existem palavras que transformam de tal forma, que a pele troca e nós nunca mais seremos os mesmos depois de sermos tocados por estas letras sagradas que, mesmo em silêncios, abraçam. E estas linhas que meus dedos percorrem, nunca mais estarão sozinhas. Linhas Pares, que meus versos te acariciem.”

Palavras Flores

Num silêncio interno, o pensamento está presente, mas não é possível percebê-lo, pois as palavras que antes se espremiam na saída da mente, agora se aquietam e esperam serenamente pelo momento certo de nascer. Palavras quando nascem no momento certo, viram as palavras escolhidas pela poesia e florescem. Queria aprender a plantar Palavras Flores. Se o desafio maior é estar presente no intervalo entre nascer e morrer, ser capaz de estar na quietude entre um movimento e outro, vamos então meditando poemas. Só a poesia permite palavras em estado meditativo.”
Claudia Quintana

Um dia de cada vez

A vida caminha passo a passo.

Mas e se eu quiser voar?
 

– Claudia Quintana

Revista Prosa Verso e Arte

*Com informações do Jornal da USP/online

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