Deve ser uma
das peças mais famosas da literatura oral brasileira. Às vezes é
atribuída a Rui Barbosa, outras vezes a um intelectual qualquer. É
sempre um diálogo entre um erudito de fala pomposa e um sujeito rústico
que não entende o que ele está dizendo.
Em alguns
casos, o intelectual está querendo atravessar de balsa um rio; em
outros, está querendo evitar o furto de um objeto ou animal; em outros
ainda, está pedindo para carregar uma carroça com caixas e outros
volumes.
Vou contar a
versão mais antiga que conheço. Contarei de memória, reinventando os
trechos de que não me lembro, como é de praxe na Literatura Oral.
Ora pois, lá
vinha Rui Barbosa andando pela zona rural quando a estrada chegou à
beira de um rio. Havia uma balsa amarrada a um tronco, e nela um negão
forte, que era o remador. Rui, cansado de andar, apoiando-se numa
bengala, dirigiu-se a ele:
“Ó, nobre
etíope de estatura avantajada! Quanto queres de remuneração pecuniária
para trasladar meu indelével corpo deste polo àquele hemisfério?
Peço-te que uses de magnanimidade ao fazer o cômputo da remuneração
monetária a que tens direito, porque apesar da sisudez de minha
indumentária estou longe de ser um nababo ou potentado, e não disponho
de lastro fiduciário para fazer frente a um débito de maiores
proporções”.
O barqueiro ficou perplexo e disse algo como:
“Eita doutor, o senhor tá falando inglês?!”
Rui tornou de imediato:
“Ah,
aborígine de mentalidade incúria! Se o dizes por mera ignorância
intrínseca ao teu ser, e por falta de luzes civilizatórias auferidas na
mais tenra infância, então transijo. Mas se pretendes menoscabar a
minha alta prosopopéia, pespegar-te-ei um golpe, com meu poderoso
báculo, que irá fender tua caixa craniana e espalhar pela paisagem a
massa encefálica de que não fazes uso, produzindo um ribombo tão
ensurdecedor que fará estremecer o entroncamento das sequóias e
afugentará para sempre as aves migratórias deste meridiano!”.
Tipo isso. O
mais interessante de episódios assim é que – como ocorre com os Mitos
estudados pelos antropólogos, como ocorre com as versões do Romanceiro
Popular Nordestino, como ocorre com as nossas prosaicas anedotas de mesa
de bar – não há duas versões iguais.
Mesmo que
um pesquisador grave mil pessoas contando a mesma historieta, todas
contarão versões substancialmente diversas umas das outras, e não estou
me referindo a uma mera troca de sinônimos ou mudança na ordem das
frases. As circunstâncias mudam, o vocabulário muda, as ações descritas
mudam – mas a história é essencialmente a mesma.
A Literatura
Oral existe numa zona cinzenta entre a fixidez da Literatura Escrita e a
improvisação do teatro popular (tipo Commedia dell’Arte) em que não se
trabalha com um texto fixo e sim com um roteiro de ações e de frases
guardados de memória, o qual, no momento da execução, fica sempre ao
sabor da memória e da agilidade mental do contador. Contar é reinventar,
sempre.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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