Eu era um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo…
Eu era um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas. Adorava admirar a beleza das coisas, descortinar no imperceptível, através do que é diminuto, a alma poética do universo.
A poesia da terra nunca morre. É possível dizermos que as eras transactas foram mais poéticas, mas podemos dizer (…)
Há poesia em tudo — na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade — não o neguemos — facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho.
O meu sentido interior de tal modo predomina sobre os meus cinco sentidos que — estou convencido — vejo as coisas desta vida de modo diferente do dos outros homens. Existe para mim — existia — um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. Encontro toda uma plenitude de sugestão espiritual no espetáculo de uma ave doméstica com os seus pintainhos que, com ar pimpão, atravessam a rua.
1910?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos
estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado
Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. – 14.
Trad: Jorge Rosa
Da série: Fernando Pessoa (e seus eus) que poucos conhecem.
Revista Prosa, verso e arte
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