Flores para os vivos
"Hanifa entra em casa e regressa minutos depois trazendo uma moça pelo braço.
- Esta é a minha filha.
A jovem está envolta numa capulana que lhe cobre parcialmente o rosto.
Caminha com desanimados passos, como se fosse um espantalho. A mão deixa
pender um caderno em cuja capa se pode ler Diário de Mariamar. Quando o
seu olhar cruza com o meu, uma tontura me fulmina. De súbito, aqueles
olhos de mel transportam-me para um passado que parecia desvanecido.
Desvio o rosto, sou caçador, sei fugir das armadilhas. Aqueles olhos, de
tanta luz escurecem o mundo. Mas é um escuro bom, um suave
entorpecimento de infância. De tão claros, os olhos de Mariamar me
devolviam qualquer coisa que, sem saber eu há muito havia perdido.
Agora, dirijo-me a ela como se retomasse uma interrompida conversa e a
voz quase me falta quando pergunto:
- Só levas esse caderno, não levas uma mala de roupa?
- Ela não fala - interfere a mãe - Desde ontem que deixou de falar.
Mariamar gesticula apontando para o caderno. Aquele balbuciar faz-me
recordar Rolando, meu pobre irmão, toda a vida tão íntimo com as
palavras e agora sem acesso aos mais básicos vocábulos. A moça de olhos
de mel esbraceja, a capulana abre-se em asas e a mãe traduz:
- Ela diz que esse caderno é a sua única roupa."
Mia Couto (em "a confissão da leoa")
Ivan Kovalev Art
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