quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Diário do caçador


Flores para os vivos

"Hanifa entra em casa e regressa minutos depois trazendo uma moça pelo braço.
- Esta é a minha filha.
A jovem está envolta numa capulana que lhe cobre parcialmente o rosto. Caminha com desanimados passos, como se fosse um espantalho. A mão deixa pender um caderno em cuja capa se pode ler Diário de Mariamar. Quando o seu olhar cruza com o meu, uma tontura me fulmina. De súbito, aqueles olhos de mel transportam-me para um passado que parecia desvanecido. Desvio o rosto, sou caçador, sei fugir das armadilhas. Aqueles olhos, de tanta luz escurecem o mundo. Mas é um escuro bom, um suave entorpecimento de infância. De tão claros, os olhos de Mariamar me devolviam qualquer coisa que, sem saber eu há muito havia perdido. Agora, dirijo-me a ela como se retomasse uma interrompida conversa e a voz quase me falta quando pergunto:
- Só levas esse caderno, não levas uma mala de roupa?
- Ela não fala - interfere a mãe - Desde ontem que deixou de falar.
Mariamar gesticula apontando para o caderno. Aquele balbuciar faz-me recordar Rolando, meu pobre irmão, toda a vida tão íntimo com as palavras e agora sem acesso aos mais básicos vocábulos. A moça de olhos de mel esbraceja, a capulana abre-se em asas e a mãe traduz:
- Ela diz que esse caderno é a sua única roupa."

Mia Couto (em "a confissão da leoa")

Ivan Kovalev Art

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