Somos uma geração perplexa, somos uma geração insegura, somos uma
geração aflita — mas, como tudo tem seu lado bom, somos uma geração
questionadora.
O que existe por aí não nos satisfaz. Sofremos com a
falta de uma espinha dorsal mais firme que nos sustente, com a
desmoralização generalizada que contamina velhos e jovens, com uma baixa
auto-estima e descaso que, penso eu, transpareceram em nossa equipe de
futebol na Copa do Mundo.
Algum remédio deve ser buscado na
realidade, sem desprezar a força da imaginação e a raiz das tradições —
até no trato com as crianças.
Uma duradoura influência em minha
vida, meu trabalho e arte, foram os contos de fadas: antiquíssimas
histórias populares revistas e divulgadas por Andersen e pelos Irmãos
Grimm, para povoar e enriquecer alma de milhões de crianças — e adultos.
Esses
relatos, plenos de fantasia, falam de realidades e mitos arcaicos que
transcendem linguagem, raça e geografia, e nos revelam.
Nessa
literatura infantil reúnem-se dois elementos que me apaixonam: o belo e o
sinistro. Ela abre, através da imaginação, olhos e medos para a vida
real, tecida de momentos bons e ameaças sinistras, experiências
divertidas e outras dolorosas — também na infância.
Na realidade, nem sempre os fortes vencem e os frágeis são anulados: a
força da inteligência de pessoas, grupos, ou povos ditos “fracos”,
inúmeras vezes derrota a brutalidade dos “fortes” menos iluminados.
Porém o mal existe, a perversão existe, atualmente a impunidade reina
neste país nosso, confundindo critérios que antes nos orientavam. Cabe à
família, à escola, e a qualquer pessoa bem intencionada, reinstaurar
alguns fundamentos de vida e instaurar novos.
Não vejo isso em
certa — não generalizada — tendência para uma educação imbecilizante de
nossas crianças, segundo a qual só se deve aprender brincando, a escola
passou a ser quase um pátio tumultuado, e a falta de respeito reproduz o
que acontece tanto em casa quanto em alguns altos escalões do país.
Essa
mesma corrente de pensamento quer mutilar histórias infantis arcaicas
como a do Chapeuzinho Vermelho: agora o Lobo acaba amigo da Vovó… e nada
de devorar a velha, nada de abrir a barriga da fera e retirá-la outra
vez. Tudo numa boa, todos na mais santa paz, tudo de brincadeirinha —
como não é assim a vida.
Modificam-se textos de cantigas como
“Atirei o pau no gato”, transformando-a em um ridículo “Não atire o pau
no gato” e outras bobajadas, porque o gato é bonzinho e nós devemos ser
idem, no mais detestável politicamente correto que já vi.
O mundo
não é assim. Coisas más e assustadoras acontecem, por isso nossas
crianças e jovens devem ser preparados para a realidade. Não com
pessimismo ou cinismo, mas com a força de um otimismo lúcido.
Medo
faz parte de existir, e de pensar. Não precisa ser terror da violência
doméstica, física ou verbal, ou da violência nas ruas — mas o medo
natural e saudável que nos faz cautelosos, pois nem todo mundo é
bonzinho, adultos e mesmo crianças podem ser maus, nem todos os líderes
são modelos de dignidade. Uma dose de realismo no trato com crianças
ajudará a lhes dar o necessário discernimento, habilidade para perceber o
positivo e o negativo, e escolher melhor.
Temos muitos
adolescentes infantilizados pelo excesso de proteção paterna ou pela sua
omissão, na gravíssima crise de autoridade que nos assola; temos jovens
adultos incapazes porque quase nada lhes foi exigido, nem na escola,
nem em casa. Talvez tenha lhes faltado a essencial atenção e interesse
dos pais, na onda de “tudo numa boa”.
Dar a volta por cima significará mudar algumas posturas e opções, exigir
mais de nós mesmos e de nossos filhos, de professores e alunos, dos
governos, das instituições. Ou vamos transformar as novas gerações em
fracotes despreparados, vítimas fáceis das armadilhas que espreitam de
todos os lados, no meio do honrado e do amoroso — que também existem e
precisam se multiplicar.
Não prego desconfiança básica, mas uma perspectiva menos alienada:
duendes de pesadelo aparecem em nosso cotidiano. Nem todos os amigos,
vizinhos, parentes, professores ou autoridades nos amam e nos protegem.
Nem todos são boas pessoas, nem todos são preparados para sua função,
nem todos são saudáveis.
Para construir de forma mais positiva
nossa vida, é preciso, repito, dispor da melhor das armas, que temos de
conquistar sozinhos, duramente, quando não a recebemos em casa nem na
escola: discernimento. Capacidade de analisar, argumentar, e escolher
para nosso bem — o que nem sempre significa comodidade ou sucesso fácil.
Quem
ama, cuida: de si mesmo, da família, da comunidade, do país — pode ser
difícil, mas é de uma assustadora simplicidade, e não vejo outro
caminho.
Lya Luft, no livro “Em outras palavras”. Rio de Janeiro: Record, 2011.
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