Augusto e Olavo
O aniversário de Augusto dos Anjos aconteceu algumas
semanas atrás, e voltou à discussão o episódio, talvez verdadeiro, ocorrido com
Olavo Bilac. Quando se noticiou a morte do poeta paraibano, em Leopoldina, a
notícia repercutiu no Rio de Janeiro, onde Augusto tinha morado até pouco tempo
atrás. No Rio ele lançara seu livro Eu,
e tinha vários amigos e admiradores.
“Morreu o poeta Augusto dos Anjos”, disse alguém, talvez
na porta de uma livraria na Rua do Ouvidor, ou na calçada da Confeitaria
Colombo. “Quem é?”, perguntou Bilac. O interlocutor explicou e recitou um
soneto de Augusto. Bilac, desdenhosamente, atirou longe a ponta do cigarro e
comentou: “Não se perdeu grande coisa”.
A ponta de cigarro é por conta do meu cacoete ficcional,
mas há vários relatos dessa atitude dismissiva do “Príncipe dos Poetas
Brasileiros” em relação a um anônimo, cujos versos arrevesados Bilac certamente
consideraria de mau-gosto. Os relatos divergem sobre o soneto que serviu de
amostra. Uns falam no clássico “Versos Íntimos” (“Vês? Ninguém assistiu ao
formidável enterro...”), outros falam de “Versos a um Coveiro” (“Numerar
sepulturas e carneiros, reduzir carnes podres a algarismos...”)...
Não importa; seria mesmo difícil que Bilac, poeta de
imenso talento mas cheio de arrebiques, “entendesse a proposta” de Augusto, que
aliás, pouca gente da época entendeu.
A diferença entre os dois é principalmente que Bilac
nunca leu Augusto, mas Augusto denota ter lido Bilac. E não havia como fugir a
uma influência de um poeta que, nas suas décadas de maior brilho, tinha uma
presença comparável à que Carlos Drummond veio a ter meio século depois.
Um dos repertórios poéticos de Bilac era a Fantasia
Heróica, inspirada na Antiguidade Greco-Romana e na Idade Média. Castelos,
imperadores, príncipes, espadas, estandartes, exércitos, elmos, escudos... tudo
isso fazia parte do repertório de imagens do poeta de pince-nez e bigodes bem
cultivados.
Muito bilaqueano este soneto “Vandalismo”, onde Augusto
dá vazão a leituras que não diferiam muito das do príncipe:
Meu coração tem catedrais
imensas,
templos de priscas e longínquas datas,
onde um nume de amor, em serenatas,
canta a aleluia virginal das crenças.
templos de priscas e longínquas datas,
onde um nume de amor, em serenatas,
canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas
colunatas
vertem lustrais irradiações intensas
cintilações de lâmpadas suspensas
e as ametistas e os florões e as pratas.
vertem lustrais irradiações intensas
cintilações de lâmpadas suspensas
e as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos Templários
medievais
entrei um dia nessas catedrais
e nesses templos claros e risonhos…
entrei um dia nessas catedrais
e nesses templos claros e risonhos…
E erguendo os gládios e
brandindo as hastas,
no desespero dos iconoclastas
quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
no desespero dos iconoclastas
quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
É um dos sonetos do Engenho Pau d’Arco, de 1904, e Bilac
está todo aí, não somente na imageria medieval e templária, mas no tema
tipicamente bilaqueano (e ainda tipicamente Romântico) do guerreiro derrotado
no limiar das grandes conquistas, como o Fernão Dias de “O Caçador de
Esmeraldas” (“Na terra que venceu há de
cair vencido”). Sem falar no ritmo enumerativo (“e as ametistas e os
florões e as pratas”), presentes o tempo todo em Bilac:
E a água verde do mar, e a água fresca dos rios,
e as ilhas de esmeralda, e o céu resplandecente,
e a cordilheira, e o vale, e os matagais sombrios...
(“A um violinista”, em Alma Inquieta)
É bem de Bilac essa listagem de elementos que contempla a
um só tempo o olho e o ouvido; e qualquer poeta brasileiro da época seguia na
mesma pisada.
Bilaqueano, também, este soneto que talvez não seja
tipicamente Augusto na temática, “Vencedor”, mas o é na história afetiva de
quem sempre o leu e o decorou:
Toma as espadas rútilas, guerreiro,
e à rutilância das espadas, toma
a adaga de aço, o gládio de aço, e doma
meu coração – estranho carniceiro!
Não podes?! Chama então presto o primeiro
e o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
nenhum pôde domar o prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
e outro mais, e, por fim, veio um atleta,
vieram todos, por fim; ao todo, uns cem…
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
que ninguém doma um coração de poeta!
A ambientação de Fantasia Heróica é toda de Bilac, que gostava
de passear por Roma, Cartago, Alexandria, Atenas; não o são alguns pequenos
tropeços que um parnasiano dificilmente deixaria passar, como a repetição do
“por fim” nos tercetos – e tem esse “que” do verso final, que não sei por que
me soa tão paraibano substituindo o “porque”, e que um parnasiano trocaria sem
perda alguma por um simples “Pois ninguém doma...”.
Num outro artigo, de tempos atrás, comentei como os dois
poetas, cada qual ao seu modo, glosava o tema da palavra que não consegue
corresponder à grandeza da idéia, ou das emoções tão intensas que se quedam sem
expressão:
Mas Bilac era capaz também (porque num certo ponto de
vista o Parnasiano é um Romântico domesticado) de certas visões que não deixam
de lembrar o romantismo “negro” ou “fúnebre” que também influenciou Augusto:
(...)
Uivam os ventos funerais medonhos...
Brilha o luar... As lápides se agitam...
E, sob a rama dos chorões tristonhos,
sonhos mortos de amor despertam e palpitam,
cadáveres de sonhos...
(“Campo Santo”, em Alma Inquieta, 1902)
Ou em “Pomba e chacal” (Sarças de Fogo, 1888):
Ó Natureza! Ó mãe piedosa e pura!
Ó cruel, implacável assassina!
Mão, que o veneno e o bálsamo propina
e aos sorrisos as lágrimas mistura!
Pois o berço, onde a boca pequenina
abre o infante a sorrir, é a miniatura
a vaga imagem de uma sepultura,
o gérmen vivo de uma atroz ruína? (...)
Não é somente o tema da morte a brotar de dentro da vida,
que é augustiano; é até mesmo um detalhe de dicção, como esse “pois” que inicia
o segundo quarteto, e que tanto lembra Augusto e seu estilo comparativo,
demonstrativo de teses, espalhado por toda sua obra: “Pois é mister que para o amor sagrado...”.
Eram reinos poéticos cujas capitais ficavam distantes mas
cujas fronteiras se interpenetravam.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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