As Academias de Sião, de
Machado de Assis, dá pano para muitas mangas, apesar de não ser um de
seus maiores contos. O pano para as mangas é tecido ao longo de um plot mais
do que original para a época: as academias de Sião tentavam resolver um
peculiar problema: “Por que é que há homens femininos e mulheres
masculinas? O que as induziu a discutir isso foi a índole do jovem rei.
Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais
esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes
moles e obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses
gemiam, mas a nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas,
à maneira que o rei não cuidava de outra coisa”.
Uma das academias venceu, a que declara
que a alma é sexualizada. E ela extermina (literalmente) as outras.
Kinnara, a mais bela concubina do Sião era uma mulher máscula: “Um
búfalo com penas de cisne”. Kinnara convence o rei para que suas almas
troquem de corpo por seis meses. Cumprido o prazo, cada uma seria
restituída ao corpo original. A fábula de Machado pega emprestado temas
orientais, sobretudo hindus. Basta lembrar o parentesco do conto com a
“história hindu” de Thomas Mann As Cabeças Trocadas, onde há um
personagem belo, mas com um corpo magérrimo, e outro feio, mas de belo
corpo. Em Mann, há a troca de cabeças; em Machado, a de almas.
Após a troca, Kalaphangko, ou o corpo do
rei agora com alma de Kinnara cuidou da fazenda pública, da justiça, da
religião e matou uns tantos que não pagavam impostos. “Sião finalmente
tinha um rei”, afirma Machado. Já a alma do rei “espreguiçava-se todo
nas curvas femininas de Kinnara”. Sim, Machado de Assis diverte-se
sempre conosco. E nós com ele.
O conto parece indicar que a alma
masculina seria mais ativa e racional, enquanto a feminina seria passiva
e emocional. Mas Machado de Assis não está aqui criando teses e sim
controvérsias e boas piadas. Um pouco mais sobre Kinnara. Quando há a
troca de almas, ela passa a um plano secundário e Kalaphangko planeja
matá-la para não desfazer a troca, porém ela revela estar grávida e o
rei sente-se incapaz de matar seu próprio filho, símbolo de sua
virilidade e da continuidade da linhagem real. Ou seja, primeiro Kinnara
consegue fazer a troca de corpos através de um beijo e depois logra não
ser morta pela maternidade, um predicado físico feminino. Neste
sentido, a simples Kinnara é mais uma mulher decisiva num mundo
machadiano cheio delas. As mulheres de Machado seduzem, escolhem, querem
e conseguem, expelindo sensualidade tanto em lentas e inexoráveis
secreções ou como em espasmos (ou jatos…).
Tenho vontade, mas reluto em fazer uma interpretação do século XXI sobre um conto que não é mais do que um scherzo
de Machado. Mas há outros aspectos intrigantes neste conto cheio de
curiosidades que independem do instrumental psi de nossos dias. (1)
Machado não cai em momento algum nas piadas fáceis e depreciativas de
uma sociedade machista — e estamos em 1884. (2) Diferentemente de
Tolstói, por exemplo — um escritor absolutamente contemporâneo de
Machado — , o brasileiro não está nem um pouco preocupado em explicar o
mundo ou em trazer a Verdade e a Solução a seus leitores. Ele apenas
narra brilhantemente os fatos e nos deixa aqui pensando… (3) Os
acadêmicos consideram uns aos outros perfeitos estúpidos, mas permanecem
academia, inclusive protagonizando o festivo momento final de As Academias de Sião, cantando todos juntos o hino “Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!”.
A bela Kinnara — àquele momento já
destrocada — não entendia como os membros da academia podiam ser a
claridade do mundo quando reunidos e se detestarem separadamente… Mas
sabemos que é assim. É notável que o fundador da Academia Brasileira de
Letras nos passe uma noção tão bufa e verdadeira do comum das academias —
locais que podem ser melhor descritos como cestas de ofídios do que
como clarões para o mundo.
Milton Ribeiro
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