O que você pode esperar de um país em que pelo menos um em cada três
membros do Congresso Nacional (algumas contas, mais pessimistas, estimam
que o total possa passar dos 40%) responde a algum tipo de processo
criminal perante a Justiça — um caso sem similar no resto do planeta? Isso é só uma parte do problema.
Roubava-se tanto na Odebrecht, nos governos dos ex-presidentes Lula e
Dilma Rousseff, que a empresa achou necessário criar um departamento
inteiro destinado unicamente a cuidar da corrupção de políticos e peixes
graúdos da administração pública — com diretores, gerentes, secretárias, sistemas de TI e tudo o mais que se precisa para tocar um negócio de prioridade máxima.
Não é apenas o Congresso.
Há, nesse mundo de treva, o resto dos políticos — no nível federal, nos estados e municípios.
Há também outras empreiteiras de obras, empresários escroques, bancos
com problemas junto a delatores e mais um montão de gente.
Só se pode esperar disso tudo, na verdade, uma coisa: os mais
extraordinários esforços, por parte dos criminosos, para manter as
coisas o mais próximo possível da situação em que sempre estiveram.
Até uma criança com 10 anos de idade percebe que ninguém, aí, quer ir para a cadeia.
Todos, se pudessem, gostariam de voltar a roubar em paz.
E sabem, é claro, que não vai ser fácil. Juridicamente não existe a menor possibilidade de “zerar tudo”
— quer dizer, anular os processos por corrupção já decididos ou em
andamento na Justiça, ou eliminar as provas materiais colhidas contra
condenados, réus à espera de sentença e suspeitos de ações futuras.
Que diabo se faz, por exemplo, com as confissões que foram colocadas no papel?
E com as “delações premiadas” ora em andamento?
Também não é possível, simplesmente, fazer com que se evaporem os resultados físicos dos procedimentos judiciais de combate à corrupção já executados até agora.
Em números redondos, são cerca de 250 condenações, num total superior a 2 000 anos de prisão.
Mais de 150 criminosos de primeira linha foram para a cadeia. Bilhões de reais foram devolvidos ao Tesouro Nacional.
Para ficar no caso mais vistoso: o ex-presidente Lula, após
apresentar mais de 100 recursos de todos os tipos, já está condenado em
terceira instância — julgado, até agora, por 21 juízes (possivelmente
não exista na história do direito penal brasileiro outro caso em que o
direito de defesa tenha sido tão utilizado por um réu).
É um problema e tanto. Na impossibilidade de sumir com o passado, o esforço, agora, é para armar um futuro menos complicado para todos.
Uma das esperanças mais caras do mundo político em geral é que
prevaleça, uma vez mais, o ponto de vista dominante na elite brasileira —
que, como sabemos, tem um código moral perfeito, mas gosta muito mais
do código que da moral.
Essa elite, ou as classes que definem a virtude nacional, está tentando
construir uma espécie de trégua — a trégua que for possível, baseada em
decisões que de alguma forma possam ser vinculadas à interpretação das
leis.
Segundo os devotos do código, talvez seja uma pena para a visão comum
que se tem da ideia de justiça — mas se a majestade da lei exigir que a
moral vá para o diabo que a carregue, paciência.
Como tem objeções à vacina, há gente que acaba, na prática, ficando a favor da bactéria.
“Todos, se possível, gostariam de voltar a roubar em paz. Mas não será fácil”
É positivo anotar, de qualquer forma, que o roubo do Erário, no
Brasil de hoje, está mais difícil do que jamais foi ao longo de seus 500
anos de existência.
Em consequência da ação da Justiça, jamais foi tão arriscado ser
corrupto como no Brasil de hoje — e jamais os corruptos tiveram tanto
medo de agir como têm agora.
Talvez nada mostre melhor a calamidade que impuseram ao país que o
pedido de recuperação judicial da própria Odebrecht, aceito na semana
passada — após a destruição, em cinco anos, de quase 130 000 empregos na empresa campeã de corrupção nos governos de Lula e Dilma.
No setor de obras públicas como um todo, incluindo o restante das
empresas envolvidas em atividades criminosas, há estimativas de que até
600 000 empregos tenham sido perdidos em todo o Brasil desde que o
aparato da ladroagem começou a ruir.
Quem é culpado: os presidentes que roubaram, ou deixaram roubar, ou o sistema judicial que puniu o roubo?
J.R. Guzzo - Veja
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