segunda-feira, 1 de abril de 2019

Déficit de atenção

A senhorinha embarca no meu táxi tímida, sotaque do interior, dá o destino da corrida e se encolhe no canto do banco traseiro. Eu desenho o trajeto na minha cabeça e parto. É um caminho conhecido, apesar de longo, não há dúvidas quanto ao itinerário. Logo estou no piloto automático. Rádio no volume mínimo, a ideia de uma nova crônica fermentando na cabeça - a história de uma noiva que usa o taxista para fazer ciúmes no noivo, um caso real, cheio de detalhes sórdidos, contado por um colega. Resolvo parar em um posto de combustível, numa lojinha de conveniência onde a balconista é uma velha conhecida. Ela é gremista doente, de ir ao estádio, torcida organizada e tudo mais. Ela conta que está com o pai fazendo hemodiálise, não tem conseguido acompanhar o time, mas diz que tem me seguido nas redes sociais, assistiu a algumas reportagens. Resolvo contar para ela a história da noiva, pra ver se funciona com o público. Ganho um café em troca. Não lembrava como essa minha amiga era boa de papo. Não demora estamos às gargalhadas, o tempo voa, nem sei a quanto tempo estou ali jogando conversa fora. Preciso voltar a trabalhar. Vou até o banheiro, faço um xixi, pego uma água mineral e me despeço da minha amiga. Trocamos WhatsApp e prometemos manter contato. Enquanto volto ao táxi dou uma conferida no aplicativo que anda quieto demais, pouca gente precisando de transporte nessa área - imagino que vou voltar vazio até meu ponto...
Quando encosto a mão na maçaneta pra abrir a porta do táxi, noto um movimento estranho no banco traseiro...
A SENHORINHA!
Meu Deus, eu havia esquecido completamente que estava com uma cliente! Ela me olha com cara de assustada, não fala nada, parece sufocada no carro fechado, está a ponto de desmaiar! Abro os vidros do táxi, ofereço um pouco de água mineral, a garrafa toda, mas ela não aceita, pergunta apenas se eu ainda vou demorar muito, se estamos muito longe do seu destino, noto um terço entre os dedos da mulher, ela estava rezando, coitada, talvez pedindo a Deus que não a abandonasse como fez o taxista maluco com o qual estava lidando.
O resto foi silêncio e vontade de não ter nascido.
 

 Mauro Castro 

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