[…] Lembro-me da festa de aniversário para o meu pai, quando ele
completou 60. Pelas aparências ele estava feliz: ele comia, bebia, ria,
falava. Em silêncio eu o observava e pensava: “Como está velho…”
Vieram-me à memória os versos de T. S. Eliot: “E eles dirão: ‘Seu
cabelo, como está ralo!’ Meu casaco distinto, meu colarinho impecável,
minha gravata elegante e discreta, confirmada por um alfinete solitário –
mas eles dirão: ‘Seu braços e pernas, que finos que estão!'” Compreenderei se pessoas olharem para mim e pensarem pensamentos parecidos aos que pensei ao olhar o meu pai.
Comovo-me ao recordar-me do poema do Vinícius “O Haver”.
É um poema crepuscular. Ele contempla o horizonte avermelhado, volta-se
para trás e faz um inventário do que sobrou. Fiquei com vontade de
fazer algo parecido, sabendo que não sou Vinícius, não sou poeta, nada
sei sobre métrica e rimas. E eu começaria cada parágrafo com a mesma
palavra com que ele começou suas estrofes: Resta…
Resta a luz do
crepúsculo, essa mistura dilacerante de beleza e tristeza. Antes que ele
comece ao fim do dia o crepúsculo começa na gente. O Miguelim menino já
sentia assim: “O tempo não cabia. De manhã já era noite…” Assim eu me sinto, um ser crepuscular. Um verso de Rilke me conta a verdade sobre a vida: “Quem foi que assim nos fascinou para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?”
Restam os amigos. Quando tudo foi perdido, os amigos permanecem. Lembro-me da antiga canção de Carole King “You got a friend”: “Se
você está triste, no fundo do abismo e tudo está dando errado,
precisando de alguém que o ajude – feche os olhos e pense em mim. Logo
logo estarei ao seu lado para iluminar a noite escura. Basta que você
chame o meu nome… Você sabe que eu virei correndo pra ver você de novo.
Inverno, primavera, verão ou outono, basta chamar que eu estarei ao seu
lado. Você tem um amigo…” Eu tenho muitos amigos que continuam a gostar de mim a despeito de me conhecerem. E tenho também muitos amigos que nunca vi.
Resta a experiência de um tempo que passa cada vez mais depressa. “Tempus Fugit”. “Quando
se vê já são seis horas. Quando se vê já é sexta-feira. Quando se vê já
é Natal. Quando se vê já terminou o ano. Quando se vê não sabemos por
onde andam nossos amigos. Quando se vê já passaram cinqüenta anos… ( Mario Quintana)
Resta
um amor por nossa Terra, nossa morada, tão maltratada por pessoas que
não a amam. Meu deus mora nas fontes, nos rios, nos mares, nas matas.
Mora nos bichos grandes e nos bichos pequenos. Mora no vento, nas
nuvens, na chuva. Eu poderia ter sido um jardineiro… Como não fui, tento
fazer jardinagem como educador, ensinando às crianças, minhas amigas. o
encanto pela natureza.
Resta um Rubem por vezes áspero, com quem
luto permanentemente e que, freqüentemente, burlando a minha guarda,
aflora no meu rosto e nas minhas palavras, machucando aqueles que amo.
Resta
uma catedral em ruínas onde outrora moravam meus deuses. Agora ela está
vazia. Meus deuses morreram. Suas cinzas, então, voaram ao vento.
Resta,
na catedral vazia, a luz dos vitrais coloridos, o silêncio, o repicar
dos sinos, o Canto Gregoriano, a música de Bach, de Beethoven, de
Brahms, de Rachmaninoff, de Faure, de Ravel…
Resta ainda, nos pátios da catedral arruinada, a música do Jobim, do Chico, de Piazzola…
Resta uma pergunta para a qual não tenho resposta. Perguntaram-me se acredito em Deus. Respondi com versos do Chico: “Saudade é o revés do parto. É arrumar o quarto para o filho que já morreu.”
Qual é a mãe que mais ama? A que arruma o quarto para o filho que vai
voltar Ou a que arruma o quarto para o filho que não vai voltar? Sou um
construtor de altares. É o meu jeito de arrumar o quarto. Construo meus
altares à beira de um abismo escuro e silencioso. Eu os construo com
poesia e música. Os fogos que neles acendo iluminam o meu rosto e me
aquecem. Mas o abismo permanece escuro e silencioso.”
Resta uma criança que mora nesse corpo de velho e procura companheiros para brincar. De que é que a alma tem sede? “De
qualquer coisa como tudo que foi a nossa infância. Dos brinquedos
mortos, das tias idas. Essas coisas é que são a realidade, embora já
morressem. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de
criança” ( Bernardo Soares )
Resta um palhaço… Na véspera de minha volta ao Brasil a jovem ruiva sardenda entrou na minha sala e me disse: “Sonhei com você. Sonhei que você era um palhaço”.
E sorriu. Tenho prazer em fazer os outros rirem com minhas palhacices. O
que escrevo, freqüentemente, é um espetáculo de circo. Pois a vida não é
um circo?
Resta uma ternura por tudo o que é fraco, do pássaro ao
velho. Fui um adolescente fraco e amedrontado. Apanhei sem reagir.
Cresceu então dentro de mim uma fera que dorme. Mas toda vez que vejo
uma pessoa humilde e indefesa sendo humilhada por uma pessoa enfatuada,
que se julga grande coisa, a fera acorda e ruge. Tenho medo dela.
Resta
a minha fidelidade às minhas opiniões que teimo em tornar públicas, o
que me tem valido muitas tristezas e sucessivos exílios. Mas sei que
minhas opiniões, todas as opiniões, não passam de opiniões. Não são a
verdade. Ninguém sabe o que é a verdade. Meu passado está cheio de
certezas absolutas que ruíram com os meus deuses. Todas as pessoas que
se julgam possuidoras da verdade se tornam inquisidoras. Por isso é
preciso tolerância.
Resta uma tristeza de morrer. A vida é tão bonita. Não é medo. É
tristeza mesmo. Lembro-me dos versos da Cecília que sentia a mesma
coisa. “E fico a meditar se depois de muito navegar a algum lugar
enfim de chegar. O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas e nem
gaivotas. Apenas sobre humanas companhias. De longe o horizonte avisto,
aproxima e sem recurso. Que pena a vida ser só isso…”
Resta
um medo do morrer – aquelas coisas que vêm antes que ela chegue. Eu acho
que as pessoas deveriam ter o direito, se quisessem, de dizer: “É hora
de partir…” E partissem. Se Deus existe e se Deus é bondade não posso
crer que Ele ( ou Ela ) nos tenha condenado ao sofrimento, como última
frase da nossa sonata. A última frase deve ser bela.
Resta, quanto
tempo? Não sei. O relógio da vida não tem ponteiros. Só se ouve o
tic-tac… Só posso dizer: “Carpe Diem” – colha o dia como um fruto
saboroso. É o que tento fazer.
Rubem Alves
(crônica publicada a 10 de Setembro de 2006)
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