A cara que apresentamos aos outros é como o prato que chega bem montado na mesa, sem vestígio do turbilhão em que se originou.
Depois das revelações do chef franco-novaiorquino Anthony Bourdain no
seu livro “Kitchen confidential”, publicado há alguns anos, muita gente
passou a desconfiar do que comia em restaurantes.
Aparentemente, aquele mito de cozinheiros fazendo higiene íntima com a
sopa antes de mandá-la para a sua mesa não era mito. Pelo menos em Nova
York, segundo Bourdain, as cozinhas eram versões revisadas do Inferno de
Dante que podiam até incluir o Dante comendo a Beatriz enquanto ela
mexia o molho.
O livro foi um “succès de repugnance” nos Estados Unidos e deve ter
contribuído para aumentar a onda de restaurantes com vitrine dando para a
cozinha, para mostrar que não há nada a esconder. O que é uma pena,
porque o contraste entre cozinha e salão faz do restaurante uma boa
metáfora para a divisão de tudo — inclusive a gente — entre bastidores
caóticos e frentes enganosas.
Você e eu também temos a personalidade que aparece e os seus fundos, e
quem vê nossa cara (que é o nosso avesso, como escreveu a Clarice
Lispector) nem sempre adivinha a confusão que tem lá atrás. Os pratos
voando, o xingamento, a fumaça.
Por trás de cada ato e cada frase dita há uma engrenagem oculta e todo o
mundo é só a ponta visível do seu próprio iceberg, cuja extensão pouco
varia, seja você intelectual ou manicure.
A cara que apresentamos aos outros é como o prato que chega bem montado
na mesa, sem vestígio do turbilhão em que se originou. Se os outros vão
aceitá-lo ou mandá-lo de volta à cozinha é outra história.
Você não gostaria de saber o que há por trás desta crônica, por exemplo. Seus bastidores não são nada atraentes. Minha aflição com o prazo de entrega, a sonolência porque ontem não dormi muito bem, todos estes livros empilhados que não consigo arrumar, o que dirá ler, desde o século passado, a velhice chegando, o gás acabando, o Internacional na Serie B... Não interessa.
Você não gostaria de saber o que há por trás desta crônica, por exemplo. Seus bastidores não são nada atraentes. Minha aflição com o prazo de entrega, a sonolência porque ontem não dormi muito bem, todos estes livros empilhados que não consigo arrumar, o que dirá ler, desde o século passado, a velhice chegando, o gás acabando, o Internacional na Serie B... Não interessa.
A crônica tem que sair na hora certa, com a coerência possível. Não dá
nem para acrescentar uma nota de pé de página, explicando as
circunstâncias de um mau texto e pedindo a indulgência do leitor. Vale o
que aparece, sem desculpas. Esse iceberg só tem ponta.
O que não é totalmente ruim. Existe um certo prazer estético em
conhecer o outro lado, como o avesso de uma tapeçaria em que se vê o
mesmo desenho da frente mas com as costuras e as sobras de linha à
mostra — e que muitas vezes tem mais caráter do que o lado certo.
Caráter, afinal, é isso: costuras e sobras de linha aparecendo.
Inclusive as nossas.
Luis Fernando Veríssimo
Do Blog do Noblat
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