sábado, 27 de dezembro de 2014

Cultura do Assédio

Hoje em dia fala-se muito em “assédio moral” e em “assédio sexual”. Tais tipos de assédio não se desenvolveriam tão facilmente se não encontrassem um clima socialmente propício. O assédio é mais um desses padrões culturais que, em graus e intensidades diversos, atingem todas as esferas da vida. Por isso, podemos falar de uma cultura do “assédio”, ou seja, de uma cultura no “espírito” do assédio em que se desenvolvem as relações humanas, nas quais estão inscritas a questão “moral” e a questão “sexual”.
Assédio é uma prática antiética de opressão baseada na pressão direta a um indivíduo. O assediador é aquele que pressiona o assediado a fazer sua vontade. Ele trata o assediado como um objeto que deve lhe servir.
Que o assediador não seja capaz de ver no outro um sujeito, antes vendo nele um objeto, não lhe tira a responsabilidade por qualquer de seus atos, mas explica-se no contexto em que, de algum modo, a grande maioria não coloca para si a questão do outro. A sociedade do assédio forma pessoas capazes de produzir o assédio. E de consentirem com ele. É como se surgisse uma autorização instaurada na esfera social – que cada um introjeta -, a tratar o outro como coisa, desde que não se valoriza o outro como sujeito de direitos. O assediador age com o aval da falta de reconhecimento (de respeito e até de empatia) para com o outro como prática generalizada ao nível da cultura.
As instituições cobram desempenhos de seus indivíduos. Sem pressão a maior parte das dívidas não são pagas. O Estado cobra impostos e obediência às leis, a Família cobra ações relativas a papéis de gênero e responsabilidades financeiras, a Escola cobra sucesso e obediência, o mundo do Trabalho cobra a produção, a Economia em seu estado atual cobra consumo. A sociedade do assédio é a rede organizada em torno do desempenho com vistas à manutenção dessas instituições nas quais pessoas individuais tem chance de se auto-conservarem apenas se conseguem corresponder ao padrão exigido para a manutenção da instituição.

Zygotic Acceleration, Biogenetic, De-Sublimated Libidinal Model; Jake & Dinos Chapman

Aquele que não corresponde sente-se em falta. A falta é relativa a não desempenhar algo corretamente. Dela advém a culpa. Nietzsche (1844-1900) identificava como sentimento de culpa a essa falta plantada em alguém pela pressão a corresponder a um conjunto de regras opressoras da moral. Não importa a época, nem o conteúdo dessa moral, o fato é que sempre há uma moral, sempre há um padrão a seguir e a culpabilização correspondente à impotência para adequar-se a ela. O mal, neste caso, é sentir-se inadequado. O inadequado faz qualquer cosia para eliminar a culpa. Sem saber que essa culpa não pode ser expiada no âmbito da sociedade em que o princípio do desempenho está em jogo.
Assim é que a sociedade do assédio é a sociedade da culpabilização. O endividamento que se tornou tão comum em nível compulsivo no capitalismo atual, é o gesto que busca conter a culpa. O culpado é a vítima que não sabe que é vítima. É quem paga uma espécie de dívida em abstrato. A sociedade do assédio é esta que precisa criar mecanismos para cobrar aquilo que ela deseja como resultado.
É nesse contexto que a publicidade se torna instituição. Ela é responsável pelo assédio diário dos indivíduos para que desejem, queiram e comprem. Mas ela não o faz por criar desejos em um sentido genuíno. A publicidade não age na simples sedução. A sedução não seria tão insistente. A sedução está para Don Juan, assim como o estupro para a publicidade. A insistência visa o consentimento da vítima. Mas se trata, no caso da publicidade, de uma violência que precisa do aval da vítima, ela precisa da adesão, daí que não se trate exatamente – ou tão somente – de estupro, mas justamente de assédio, um tipo de violência que esconde a sua violência. No fundo, há o estupro, mas ele está acobertado por camadas e camadas de acordos culturais ao qual a vítima deve aderir. O assédio é a violência que se esconde na aparência de impotência para a violência. Que se mascara no enredamento pseudo-sedutor. Que não deve chegar ao estupro, que não precisará dele, porque a vítima entregar-se-á facilmente assim que ela se der conta de que não tem outro jeito. “Relaxe e goze” é a sentença cínica que avaliza o ato para assediador e assediado dando ganho de causa ao assediador. Não há desejo nesse “gozo”. A administração do desejo é, na verdade, a da culpa que impede o real desejo. Assim é que é preciso fingir que o assediado deseja. Ele precisa crer que tem alguma vantagem. Sem crer nessa vantagem ele poderia se rebelar e por tudo a perder.
Pressupõe-se uma vítima dócil. Daí que a prática deva parece algo impotente. O caráter, por assim dizer, pedofílico, de todo assédio, tem a ver com essa aparência de fraqueza do próprio ato que se dirige a alguém inimputável e que, de algum modo, precisa consentir com o que se faz com ele.
A propaganda para crianças é, a propósito, um exemplo dos mais cruéis a se levar em conta nesse caso, pois a infância é o estágio da vida em que as estruturas básicas da subjetividade estão sendo fundadas. Aquelas que aos poucos permitirão o discernimento, o julgamento, a reflexão relativa a todas às esferas da vida. A criança confia no adulto, assim como o cidadão rebaixado a consumidor, confia na publicidade.
O assediado é vítima, mas sobretudo, ele é sujeito de direito. E é isso que também deve se procurar esconder para que a cultura do assédio reproduza a si mesma infinitamente.
 
 
Márcia Tiburi
Originalmente publicado na Revista Cult

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