quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A liberdade seletiva de Sheherazade e Jean Wyllys

 
 Nunca faltou quem defendesse uma liberdade relativa, adjetivada, dividida em parcelas ou restrita a setores específicos da sociedade. Poucos, no entanto, foram os que levaram a liberdade como princípio, como uma decorrência natural da existência humana. “Em todos os tempos sempre foram raros os verdadeiros amigos da liberdade.”, Dizia Lord Acton na Inglaterra do século XIX. Agora, no Brasil de fevereiro de 2014, é assustador como a frase ainda ecoa com tanta força.
 
No Rio de Janeiro, um garoto de 15 anos foi amarrado sem roupas a um poste em via pública e torturado por cerca de 30 homens, tendo a orelha cortada por seus agressores. Após ter sido levado a um hospital e medicado, o garoto fugiu. Comentando a notícia, a colunista Rachel Sheherazade, do SBT, se referiu ao garoto como “marginalzinho”, dando a entender que a fuga do hospital se deu em função do medo de ser encontrado pela polícia e preso por conta de sua ficha criminal “mais suja que pau de galinheiro”.
 
As primeiras informações ainda não identificavam a ficha criminal do garoto e é curioso que Sheherazade tenha feito afirmações tão contundentes sobre isso, num momento em que provavelmente desconhecia o próprio nome do rapaz. De fato, a imprensa identificou alguns bandidos, réus confessos e detidos em flagrante: foram justamente os torturadores cujos atos criminosos Rachel julga “compreensíveis” e “legítimos”.
 
As insinuações dela quanto ao motivo da fuga do garoto também pareceram não resistir a uma mínima apuração jornalística. Segundo as reportagens, o rapaz fugiu assustado e foi imediatamente ao encontro da diretora de um abrigo municipal, onde permaneceu teve sua localização imediatamente revelada à polícia.
 
Como eu considero que fichas criminais não justificam sessões de tortura coletiva, concedo a Rachel o gozo livre da fala estúpida. Sei que o adolescente tinha passagens pela polícia. Talvez ele até tenha cometido um crime tão grave quanto aquele do qual foi vítima – ponto sobre o qual não há indícios. Recuso-me, porém, a classificar como jornalista alguém que justifica e incentiva a mutilação de um garoto de 15 anos sem sequer se dar ao trabalho de esclarecer as informações que utiliza como desculpa para a barbárie.
 
Recuso-me, também, a chamar de “justiceiros” os torturadores, ou dizer que eles fizeram “justiça com as próprias mãos”. As duas expressões, usadas por toda a sorte de palpiteiros sobre o caso, dão à palavra justiça uma definição bastante controvertida. Afinal, o que há de justo em trinta homens adultos utilizando facas e armas de fogo para aterrorizar um menino solitário amarrado pelo pescoço?
 
Logo após a veiculação das imagens, Sheherazade foi fortemente criticada pelo PSOL, que promete processá-la por conta das suas opiniões. Não creio que a estupidez da comentarista possa ser considerada um ato criminoso. Se for, sugiro que o PSOL também corte na própria carne.
 
No mesmo dia em que Rachel apareceu no jornal, o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) revoltou-se com o pedido de asilo político da cubana Ramona Matos Rodriguez, chamando-a de desertora e ironizando o emprego do termo “escravo”, comumente utilizado para se referir aos médicos cubanos que trabalham em solo brasileiro.
 
Jean, que foi vencedor do reality show Big Brother Brasil e é homossexual assumido, ganhou projeção nacional como deputado por questões relacionadas ao público LGBT. Ele acredita que todo ser humano deve ser livre para amar e se relacionar com quem bem queira – desde que não seja uma relação de trabalho. Jean acha que Ramona não deve ser livre para escolher onde trabalhar, nem para fugir de um regime autoritário que perseguiu e assassinou homossexuais.
 
O PSOL agrega os termos “socialismo” e “liberdade”. Mostra agora, mais uma vez, que quando precisa escolher entre dois valores quase sempre incompatíveis elege como prioridade o seu projeto político. Se em um momento ou outro o PSOL defende a liberdade, não o faz porque goste, mas porque precise.
 
Ao comentar a tortura em via pública de um garoto de quinze anos, Sheherazade se apegou a detalhes irrelevantes, como a fuga do hospital, para justificar o autoritarismo. Ao comentar o pedido de asilo de uma mulher farta de viver sob os desmandos de um genocida, Jean Wyllys ironizou o acontecimento, apegando-se a detalhes irrelevantes, como a participação do DEM no caso.
 
Para justificarem as suas opiniões bizarras, Jean e Rachel usurpam palavras em um dicionário um tanto particular, torturando a linguagem para defender absurdos que atentam contra os direitos humanos. No dicionário de Jean Wyllys, os médicos cubanos não podem ser chamados de escravos, ainda que escravidão seja a única palavra possível para classificar um regime de trabalho em que o trabalhador não pode se demitir, é vigiado por agentes de segurança e recebe um salário arbitrário definido unilateralmente. No dicionário de Rachel Sheherazade, a barbárie ganha o curioso nome de “legítima defesa coletiva”e torturadores viram justiceiros.
 
Jean Wyllys e Rachel Sheherazade são duas faces de uma mesma moeda. Em nome de seus preconceitos, projetos políticos e valores discutíveis, Jean e Rachel redefinem o significado das palavras que lhes interessam e destilam seu ranço autoritário da forma mais nojenta possível. Rachel o faz em nome da ordem, Jean em nome da ideologia. A essência, porém, é a mesma. E a liberdade, aquela liberdade da qual falou Lorde Acton, continua tendo pouquíssimos amigos sinceros.
 
 
Por Pedro Menezes e Mano Ferreira

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