segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Arte como pensamento e ação


Podemos dizer: “a arte ensina a pensar”, “a arte é um meio para a reflexão”. Podemos chegar a algo mais extremo: “a arte substituiu o pensamento na tarefa da interpretação do mundo”. Frases como estas correm soltas em nossos meios, sejam eles intelectuais ou não; conhecemos a idéia da arte como “medium” de reflexão no romantismo alemão que veio fazer escola no século XX influenciando artistas, filósofos e até a figura do curador de exposições que veio a se tornar enfática na atualidade. Sua verdade, porém, só será compreendida se analisarmos a ambigüidade que veiculam. Um bom método para buscar a compreensão de algo é sempre ver o que cada frase, cada idéia ou preposição, oculta. E é sempre útil desconfiar que perguntas camuflam perguntas e respostas prontas podem evitar ou interromper o processo do pensamento.

Neste contexto é importante uma crítica sobre a questão “a arte faz pensar” capaz de mostrar sua pertinência e limites.

Tais preposições estão extremamente vinculadas à questão da falência da filosofia. Desde Marx, segundo a famosa 11ª Tese sobre Feuerbach, “os filósofos até agora se ocuparam da interpretação do mundo enquanto cabe transformá-lo”. Marx fazia do pensamento um trabalho cuja responsabilidade era a modificação das condições materiais da existência. A filosofia não poderia ser mera teoria no sentido da contemplação desligada da realidade social e política e sem função prática. Neste sentido Marx apenas conclamava os filósofos, aqueles que se davam à tarefa do pensamento especializado e qualificado como até hoje, a que, como os proletários do seu tempo - objetos de relações de poder, mas artífices dos meios de produção - tomassem em suas mãos o poder de que dispunham e realizassem sua excelência e natureza: que cada um efetivasse sua função social, que os filósofos fizessem o pensamento valer revolucionando a vida concreta e que os trabalhadores fizessem seu trabalho valer como poder que ele de fato era. Mas o que não estava dito era que a falência da filosofia era igual, neste contexto, à falência do trabalho e ambos deveriam ressurgir como poderes transformadores.

Neste ponto, a arte aparece como uma atividade capaz de fazer o que a filosofia não foi capaz, a saber, oferecer uma reflexão mais profunda e mais crítica da realidade. É interessante que não tenha se tornado uma questão tão levada a sério a capacidade da arte em revolucionar o mundo trabalho. A crítica da arte jamais colocou a questão sobre a pertinência da arte na transformação do mundo que a filosofia teria deixado a desejar. Uma transformação da ação por meio da arte equivalia a uma transformação do trabalho que estava na esteira da crítica de Marx à filosofia. Apenas Marcuse, em meados do século XX, acreditará que a arte é capaz de ser trabalho não alienado, trabalho que realiza subjetivamente quem o promove. Mas é curioso que hoje a arte venha reivindicar o lugar especial frente ao pensamento. Quem defende a idéia de que arte realiza o papel da filosofia tem em mente esta falência do pensamento no que concerne à sua vocação prática abandonada. Vocação que não pode, a propósito, ser perdida de vista, devendo - a cada vez e com urgência - ser recuperada. Filósofos como Theodor Adorno (autor da Teoria Estética, a maior obra a relacionar arte e filosofia no século XX) dirá que a arte é autônoma no que concerne à sua lei formal em relação à sociedade e que isso constitui sua maior crítica ética e política. O que a arte veio ensinar à filosofia deve ser compreendido nos termos do que a sensibilidade é capaz de ensinar à razão, processo cujo reconhecimento é absolutamente necessário desde que a razão iluminista demonstrou sua necessidade de crítica ao perder-se nos descaminhos de uma existência separada da sensibilidade.

Seguindo tal caminho, desde Schopenhauer, Nietzsche e Kierkegaard, pelo menos entre os mais conhecidos, a filosofia tem tentado ser arte no sentido da aventura criativa do pensamento que deixa revelar suas sombras e luzes, expandindo-se como consciência e inconsciência, emoção e lógica num arranjo dialético, ou seja, capaz de entrelaçar facetas opostas. A arte mostrou e ainda mostra à filosofia os limites do pensamento meramente racional e lógico. A evolução da filosofia dependia de que objetos, as obras de arte, devessem ser enfrentados pela racionalidade e que, na oferta de um choque de sensibilização dado pelas obras de arte, o pensamento evoluísse rumo ao reconhecimento de seus limites. Isso, de fato, ocorreu no século XX. A obra de arte mostra o limite da explicação racional e lógica e evidencia-se como algo “mais” em relação à linearidade do pensamento lógico.

Mas não é possível dizer que a arte substitui o pensamento, antes a relação é dialética e Adorno tinha razão: se a arte auxilia o pensamento, o pensamento também auxilia a arte. Outra coisa, no entanto, é dizer que o pensamento substitui a arte. Diante dessa idéia o que encontramos é a ausência de dialética que promove um retrocesso no trabalho do pensamento tanto quanto no das artes. A dialética é o método que permite reconhecimento na relação entre opostos, que não elimina polaridades na intenção de hierarquizar um deles oferecendo uma resposta rápida e fácil ás dificuldades imanentes ao processo do conhecimento.

É necessário, entretanto, voltar à questão do trabalho e pensar por que ninguém pergunta sobre a falência da arte, enquanto a falência da filosofia parece dada. Por que pensamos a arte como tendo o direito de ser “mais adequada” para a reflexão do que a filosofia, do que o trabalho especializado com o pensamento que ela quer promover? Se ela promove pensamento, podemos dizer que ela tem razão ao interferir no método, colocando a sensibilidade no lugar onde antes estava apenas a lógica. Mas, por outro lado, não seria de devolver à arte a pergunta sobre a sua própria incapacidade em transformar o mundo do trabalho, da prática, da ação? Optar pelo pensamento só tem sentido se carregamos junto dele a ação.

Se a filosofia produziu pensamento alienado enquanto tentava produzir pensamento qualificado, o fato de que a arte venha interferir no pensamento é relevante e fundamental, pois ela alcança para a filosofia algo que ela mesma era incapaz. Mas isto não transforma a arte na verdade das verdades, o novo tribunal onde o pensamento qualificado pode ser julgado.

Resta a pergunta sobre o fato de que a arte não tenha se ocupado com a esfera da prática e do trabalho, afinal, que espécie de “pensamento” ela pretende ser ou produzir? O que a arte mostra é a possibilidade de mudar o mundo mudando o pensamento. Adorno interpretou assim a vantagem da arte diante da filosofia. Tal possibilidade, todavia, possui um limite atroz: a crença da arte no pensamento (a arte como cosa mentale de Da Vinci e como artefato conceitual no século XX) mostra também a incompetência da arte em mudar o mundo do trabalho, da ação.

***

Há que se colocar uma questão camuflada: é preciso suspeitar da arte quando ela procura esquivar-se de uma tarefa que é imanente ao seu sentido enquanto coisa social: a tarefa da sensibilização.

Aquilo que a arte critica, o pensamento, define o objeto sobre o qual ela deseja interferir e certamente o fará ao dar sensibilidade ao pensamento, mas isso não é nenhuma garantia de que a arte, por si só e simplesmente, possua como absoluto a sensibilidade como algo que a obra carrega espontaneamente. Este é o grande limite da arte, a crença na onipotência da sensibilidade como se esta não fosse formada e educada, instrumento do poder e da ideologia.

E devemos perguntar: quando a arte se propõe a substituir a filosofia quem realizará a ação de sensibilização? Não podemos tomar a sensibilidade como dada, ela precisa ser construída, tanto quanto o pensamento. Assim como o pensamento é uma tarefa complexa e árdua, do mesmo modo o é a sensibilidade. Neste ponto, a filosofia avança para além da arte: enquanto a filosofia está procurando chegar à prática, ter relevância para o mundo da ação após a dura autocrítica que levou a cabo, a arte, com todas as tentativas revolucionárias promovidas no século XX, também não chegou onde prometia. É preciso reformular o juízo: a falência da filosofia é concomitante à falência das artes. Mas se aquela se revisa desde o século XIX, esta ainda não promoveu a própria autocrítica. O avanço da filosofia nasceu de sua autocrítica, os artistas e as artes ainda não realizaram esta auto-avaliação até as últimas conseqüências.


Márcia Tiburi – Prof. de filosofia (Unisinos e Unilasalle)
Autora de Filosofia Cinza (Escritos, 2004) e Diálogo sobre o Corpo (Escritos, 2004).


Publicado no Jornal do Margs, n° 105, Dezembro 2004. Página 8.

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