Lampião, o cangaceiro, quase vira cláusula da Constituição da República de 1934.
As investidas do Rei do Cangaço contra cidades, fazendas e , mais
ainda, seus confrontos com as forças policiais, renderam discursos
inflamados no Congresso Nacional.
Documentos guardados nos Arquivos do Senado e da Câmara mostram que
os parlamentares trataram do tema na tribuna em inúmeras ocasiões.
Em 1926, o senador Pires Rebello (PI) discursou:
— Quem vive nesta capital da República [Rio], poderá achar que o
governo tem feito a felicidade completa dos brasileiros. Ofuscados pelos
brilhos da luz elétrica, é natural que os cariocas não saibam que
naquele vasto interior existem populações aquadrilhadas fora da lei que
zombam da Justiça e ridicularizam governos.
As investidas de Lampião eram tão brutais que, na Assembleia Nacional
Constituinte de 1934, deputados nordestinos — a Assembleia não teve
senadores — redigiram cinco propostas para que a nova Constituição
previsse o combate ao cangaço como obrigação do governo federal.
A repressão cabia as volantes, batalhões itinerantes das polícias dos
estados. O que parte dos constituintes desejava era que o Exército
reforçasse a ação das volantes. O deputado Negreiros Falcão (BA)
afirmou:
— Os Lampiões continuam matando, roubando, depredando, desvirginando
crianças e moças e ferreteando-lhes o rosto e as partes pudendas sem que
a União tome a menor providência. Os estados por si sós, desajudados do
valioso auxílio federal, jamais resolverão o problema.
O deputado Teixeira Leite (PE) lembrou que os governos estaduais eram carentes de verbas, armas e policiais:
— A força policial persegue os bandoleiros, prende-os quando pode e
mata-os quando não morre. Hostilizados de todos os lados, recolhem-se à
caatinga e se tem a impressão de que o bando se extinguiu. Mera ilusão. O
vírus entrou apenas num período de latência. Cessada a perseguição, os
facínoras repontam mais violentos e sequiosos de sangue e dinheiro,
apavorando os sertanejos e a polícia.
Leite explicou por que seria diferente com o Exército em campo:
— Que bando se atreveria a aproximar-se de uma zona onde
estacionassem tropas do Exército, com armas modernas, transportes
rápidos e aparelhos eficientes de comunicação?
Outra vantagem era que as tropas federais podiam transitar de um
estado a outro. As estaduais não tinham tal liberdade — e os cangaceiros
tiravam proveito disso. Uma vez encurralados em Alagoas, por exemplo,
os bandidos escapavam para Sergipe, Bahia ou Pernambuco, estados nos
quais as volantes alagoanas não podiam atuar.
Nenhuma das propostas que davam responsabilidade ao governo federal
vingou, e a Constituição de 1934 entrou em vigor sem citar o cangaço.
— Na nova Constituição, vamos invocar o nome de Deus. Vamos também
constitucionalizar Lampião? — ironizou o deputado Antônio Covello (SP).
Para o deputado Francisco Rocha (BA), o cangaço exigia “remédio social”, e não “remédio policial”:
— As causas do cangaceirismo são a falta de educação, estrada e
justiça e a organização latifundiária preservando quase intactas as
antigas sesmarias coloniais, para não mencionar a estúpida ação policial
dos governos.
Segundo o jornalista Moacir Assunção, autor de Os Homens que Mataram o Facínora, sobre os inimigos de Lampião, o cangaço surgiu na Colônia e tinha a ver com o isolamento da região:
— O sertão ficava separado do litoral e mantinha uma ligação muito
tênue com Lisboa e, depois, com o Rio. O que prevalecia não era a
justiça pública, mas a justiça privada. Era com sangue que o sertanejo
vingava as ofensas. Muitos aderiram ao cangaço em razão de brigas de
família ou abusos das autoridades. Uma vez cangaceiros, executavam a
vingança contando com a proteção e a ajuda do bando.
Lampião entrou no cangaço após a morte de seu pai pela polícia, em 1921.
— O cangaceiro não era herói. Era bandido mesmo — esclarece Assunção.
— A aura de herói tem a ver com um atributo valorizado pelo sertanejo
do passado: a valentia. O cangaceiro enfrentava a polícia sem medo, de
peito aberto. Isso era heroísmo.
Em 1935, com a nova Constituição já em vigor, o senador Pacheco de
Oliveira (BA) apresentou um projeto de lei que destinaria 1,2 mil contos
de réis aos estados para repressão ao cangaço. O dinheiro sairia do
orçamento da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas, responsável
pela abertura de açudes, poços e estradas no sertão.
A grande preocupação de Oliveira eram os criminosos que atacavam os trabalhadores e atrasavam as obras.
— Um engenheiro avisou sobre o risco que corria seu pessoal. Como não
lhe chegassem recursos, lançou mão do único expediente que lhe era
praticável: armou os trabalhadores.
Os cangaceiros matavam os operários por terem ciência de que a
chegada do progresso ao sertão colocaria em risco o futuro das
quadrilhas nômades.
Fonte: Agência Senado
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