sexta-feira, 10 de abril de 2020

A Paixão de Cristo

Os últimos cinco dias que Jesus Cristo passou vivo foram emocionantes. Tanto para ele como para seus seguidores. A entrada triunfal dele em Jerusalém na semana da páscoa judaica, os tumultos que sua presença causou ao redor do Templo Sagrado, as altercações  com os fariseus, a última ceia, a traição, a prisão, o julgamento, a flagelação e a crucificação, tudo foi muito rápido, avassalador, compondo os atos do  Drama da Paixão. Episódio trágico até hoje representado no mundo inteiro pelas comunidades cristãs.

A páscoa em Jerusalém

“A religião, até hoje,  não teria  existido sem uma parte de ascetismo, de devoção, de maravilhoso.”
 E.Renan – A Vida de Jesus, 1863.
 
Na  páscoa Jerusalém lotava. Em situações normais acredita-se que a cidade não comportasse mais de 50 mil habitantes na época de Jesus Cristo. Todavia, durante as grandes festas judaicas,  multidões vindas de todas as partes do País de Canaã para lá afluíam. As cercanias ao redor do Beit Hamikdash, o Templo Sagrado, tornavam-se um vespeiro humano com o entra e sai daqueles que para lá iam depositar suas oferendas nos altares santos e fazer as prostrações. 

Vindo da Galiléia, um tanto que fugido, sentindo-se ameaçado pela polícia de Herodes Antipas, Cristo decidiu-se por fazer uma entrada triunfal na cidade santa. Para afirmar publicamente que o seu reinado, ao contrário da monarquia herodiana,  era o império dos simples, adentrou pelo portão montado num jumentinho. A multidão local, lançado Hosanas,  recebeu-o como “ o filho de Davi”, alguém que havia herdado do lendário rei o poder de fazer curas e operar milagres. Entretanto, o recém chegado logo se indispôs com meio mundo.

A Palestina no tempo de Cristo

A Palestina, na ocasião chamada de País de Canaã ( da cor púrpura , em fenício), estava ocupada pelas legiões romanas desde que Pompeu   fizera de Jerusalém seu quartel-general, no ano 63 a.C. Sabendo que a única maneira de manter uma certa autonomia dos judeus era aliando-se aos romanos, o rei Herodes, dito o Grande,  da etnia dos ismodeus judaizados, resolveu associar-se inteiramente aos desígnios de Roma. Desde o ano de 38 a.C. ele, com o beneplácito dos triúnviros Marco Antônio e Otávio, fora indicado como Rex amicus et socius populi Romani. 

A política de Herodes foi sempre apoiar o principal caudilho romano, posição essa que não era bem vista pelo seu povo em geral. Mas o que poderia fazer o pequeno reino de Israel frente às águias imperiais cujas asas estendiam-se por boa parte do mundo europeu e  mediterrâneo? Assim é que os hebreus tiveram que conformar-se em submeter-se ao Regime do Protetorado. Quanto Herodes o Grande morreu,  no ano 4 a.C. ( data que virou festa judaica), seu reino foi dividido numa tetrarquia entre seus filhos. O próprio povo, por meio dos altos sacerdotes,  intercedeu junto as autoridades de ocupação para que os poderes tirânicos da dinastia herodiana fossem limitados por Roma.

A tetrarquia e os procuradores romanos

A Arquelau coube a posição de etnarca ( uma espécie de governador de província) da Judéia e da Samária, a Herodes Antipas a parte da Galiléia e da Perea, enquanto que o seu irmão Herodes Filipe ficou com a Iturea e a Galaunítida. Todos eles inteiramente obedientes ao Legatus Augustae, ao governador-geral romano da Síria. Este por sua vez se fazia representar na região através de um procurador cuja sede oficial  ficava na cidade  de Cesaréia Marítima, deixando que Jerusalém permanecesse no controle simbólico do sinédrio, da assembléia dos anciãos responsáveis pelo Templo Sagrado, presidida por um sumo-sacerdote. Na época de Cristo,  ele chamava-se Caifás. Os romanos, seguindo a  tradição de serem liberais nas questões religiosas,  permitiam que os judeus mantivessem suas cerimônias e se comprometeram a não perturbarem os rituais ou a profanarem os espaços sagrados deles. Tanto assim que causou enorme tumulto quando Herodes o Grande, num gesto de querer agradar os ocupantes, mandara expor uma águia dourada, símbolo romano, numa das entradas do Templo. Perturbação que obrigou os romanos a submeterem os hierosolimitas, a população de Jerusalém, ao duro braço da legião. 

A tensão entre a população e os ocupantes era pois constante, resultando em intermináveis desavenças e amotinamentos que eram reprimidos sem dó pelos centuriões ( desavenças essas que três décadas depois da morte de Cristo  gerarão a grande rebelião judaica de 66, seguida da destruição de Jerusalém pelos romanos no ano de 70).  Além das rivalidades que separavam os saduceus (mais conciliadores) dos fariseus (os  “separados”), os escribas e  doutores da lei que desejavam viver o mais próximo possível de acordo com a Lei Mosaica, havia ainda entre os judeus uma facção extremista, a dos zelotes. Muitos deles atacavam os romanos, e aqueles que colaboravam com eles,  armados com punhais ( sikos, em grego), dai também serem designados como sicários. Seguramente foi essa instabilidade crescente que fez com que a administração romana aumentasse ainda mais a sua presença na região,  transformando o Regime do Protetorado ( que se estendeu de 38 a.C. ao ano 6 d.C.), onde os  tetrarcas tinham certa autonomia, numa a ordem política mais controlada diretamente por eles: a dos Procuradores Romanos ( de 6 a 66 d.C.).

Jesus Cristo se indispõe

Em Jerusalém, Cristo sentiu-se indignado com a presença de centenas de vendedores que ocupavam o adro do Templo para negociarem de tudo, inclusive pombas a serem dadas em holocausto. Agindo com o cajado na mão para afastar dali os profanadores, disse que  aquele era um espaço para  orar e  não mercadejar. A tensão aumentou ainda mais no dia seguinte. Instalado nas escadas do Templo para pregar a chegada do Reino dos Céus, logo atraiu a atenção dos escribas e dos  fariseus,  que questionaram a presença dele naquele recinto. Viram-no como um um intruso, um farsante da Galiléia que viera promover a confusão e a descrença na capital do reino. 

Como Jesus fora batizado, uns tempos antes, por João Batista ( o famoso profeta que, quando preso na fortaleza de Maquerunte,  tivera a cabeça decepada a mando de Herodes Antipas, para antender o pedido da sua esposa Herodíade), acreditou que não devia dar explicação aos burocratas do Templo. Como o assédio deles o incomodava, pois não cessavam as provocações, o Nazareno reservou a eles uma bateria de maldições, sete no total, nas quais clamou abertamente para  que o povo local não seguisse aquela gente serpentina de dupla cara e atitude hipócrita que dominava o Templo. Assim, terminou por declarar guerra ao comércio e à burocracia sacerdotal, tendo ao seu lado somente um punhado de seguidores que tinham vindo com ele desde a Galiléia. 

Não só isso, lançando mão de algumas parábolas,  profetizou que os judeus perderiam em breve  o estatuto de ser o  Povo Eleito de Deus ( a mais explicita delas foi a dos “vinhateiros homicidas”, Mateus 21-22), como por igual imprecou contra Jerusalém acusando-a de  matar os profetas e apedrejar os que eram enviados a ela, vaticinando que “ a vossa casa ficará abandonada” ( Mateus 23-24). Não é de se estranhar, assim,  que o considerassem como alguém abertamente dissidente do judaísmo de então.

A última ceia

Entre um dia e outro, ele se recolhia à casa de Simão, o  leproso, na aldeia de Betânia, para mostrar a todos que nada podia assustá-lo. Os testemunhos indicam que o seu temperamento se alterara naqueles dias derradeiros. Tornou-se pensativo e tristonho.  Em três ocasiões anteriores ele alertara os discípulos que a vinda dele para Jerusalém resultaria na sua morte e ressurreição (Mateus 16;17-18;19-20). Na noite de quinta-feira, véspera da Sexta-feira da Paixão, no jardim de Getsémani, no Monte das Oliveiras, fez a derradeira reunião com seus apóstolos. Durante a modesta ceia, quando deu-se a Eucaristia, a partilha do pão e do vinho entre ele e os seus,  previu a traição de um deles. De fato, Judas Escariotes entregou-o a gente do Templo por 30 moedas de prata. Seguramente deve tê-lo chocado a covarde debandada dos seus seguidores quando, encerrado o encontro,  a guarda chegou para levá-lo.

Do pretório ao Gólgota

As denúncias recebidas por Caifás, o sumo sacerdote e principal autoridade teocrática judaica,  obrigara-o a mandar deter Cristo. O fato de se apresentar como Rei dos Judeus  colocava-o na posição de agente subversivo, simultaneamente contra o Templo, que não lhe reconhecia nenhuma autoridade mística e contra o Governo dos Procuradores instalado por Roma,   (que naquela ocasião era exercido por Pôncio Pilatos). A briga com os vendilhões e as discussões públicas com os escribas selaram-lhe o destino. 

O julgamento dele foi sumaríssimo. Levado na mesma noite à corte do Sinédrio, o grande tribunal dos anciãos, Caifás acusou-o de blasfemo. Crime punido com a morte. Se fosse seguida a lei mosaica ele seria lapidado. Os romanos encarregados de aplicar o ius gladii, preferiam a crucificação. Na presença de Pilatos, o prefeito da Judéia (*),  provavelmente instalado na Torre Antônia, ao lado do Templo, para a decisão final, ele não esboçou nenhum gesto de defesa. A turba que estava presente -  na hora em que o chefe romano lançou mão da venia, o direito de suspensão de uma sentença proferida - saudou o nome de Barrabás, um delinqüente local. Cristo, apupado,  aceitou o martírio.

No calvário até chegar ao Gólgota, a colina em forma de caveira situada fora da cidade, ele, além de carregar o lenho, passou pelo inferno das vergastadas e demais flagelos que os romanos costumavam aplicar aos sentenciados que padeciam na cruz. Somente as mulheres o acompanharam até o derradeiro suspiro ( João, o evangelista, assegurou que ele era o único dos seguidores que estava presente). Pregaram-no na cruz ao lado de dois ladrões como que para humilhá-lo na sua ambição de apresentar-se como Rei dos Judeus e filho de Deus.  


(*) O procurador Pôncio Pilatos estava em Jerusalém para acompanhar a páscoa e, com sua presença, evitar a ocorrência de possíveis perturbações da ordem. Herodes Antipas, o tetrarca,  também lá se encontrava por ocasião do julgamento de Cristo, mas apenas para se fazer presente naquela ocasião festiva.


Voltaire Schilling

Bibliografia

Armstrong, Karen – Jerusalém, uma cidade, três religiões, S.Paulo, Cia das Letras, 2001.
Bíblia de Jerusalém, S.Paulo, Edições Paulinas, 1985.

Donini, Ambrogio – História do Cristianismo, das origens a Justiniano, Lisboa, Edições 70, 1980.

Daniel-Robs – A Palestina no Tempo de Jesus Cristo, Lisboa, Edições Livros do brasil, s/d. 

Richardson, Peter – Herod, king os the jews and friend of the romans, Carolina do Sul, EUA, University of South Carolina, 1996. 

Toynbee, Arnold ( dir.) El crisol del cristianismo, in Historia de las civilizaciones, Madri, Alianza Editorial/Labor, 1988, vol.4. 


Fonte: aqui


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