Os últimos cinco dias que Jesus Cristo passou vivo foram emocionantes.
Tanto para ele como para seus seguidores. A entrada triunfal dele em
Jerusalém na semana da páscoa judaica, os tumultos que sua presença
causou ao redor do Templo Sagrado, as altercações com os fariseus, a
última ceia, a traição, a prisão, o julgamento, a flagelação e a
crucificação, tudo foi muito rápido, avassalador, compondo os atos do
Drama da Paixão. Episódio trágico até hoje representado no mundo inteiro
pelas comunidades cristãs.
A páscoa em Jerusalém
“A religião, até hoje, não teria existido sem uma parte de ascetismo, de devoção, de maravilhoso.”
E.Renan – A Vida de Jesus, 1863.
Na páscoa Jerusalém lotava. Em situações normais acredita-se que a
cidade não comportasse mais de 50 mil habitantes na época de Jesus
Cristo. Todavia, durante as grandes festas judaicas, multidões vindas
de todas as partes do País de Canaã para lá afluíam. As cercanias ao
redor do Beit Hamikdash, o Templo Sagrado, tornavam-se um vespeiro
humano com o entra e sai daqueles que para lá iam depositar suas
oferendas nos altares santos e fazer as prostrações.
Vindo da Galiléia, um tanto que fugido, sentindo-se ameaçado pela
polícia de Herodes Antipas, Cristo decidiu-se por fazer uma entrada
triunfal na cidade santa. Para afirmar publicamente que o seu reinado,
ao contrário da monarquia herodiana, era o império dos simples,
adentrou pelo portão montado num jumentinho. A multidão local, lançado
Hosanas, recebeu-o como “ o filho de Davi”, alguém que havia herdado do
lendário rei o poder de fazer curas e operar milagres. Entretanto, o
recém chegado logo se indispôs com meio mundo.
A Palestina no tempo de Cristo
A Palestina, na ocasião chamada de País de Canaã ( da cor púrpura , em
fenício), estava ocupada pelas legiões romanas desde que Pompeu fizera
de Jerusalém seu quartel-general, no ano 63 a.C. Sabendo que a única
maneira de manter uma certa autonomia dos judeus era aliando-se aos
romanos, o rei Herodes, dito o Grande, da etnia dos ismodeus
judaizados, resolveu associar-se inteiramente aos desígnios de Roma.
Desde o ano de 38 a.C. ele, com o beneplácito dos triúnviros Marco
Antônio e Otávio, fora indicado como Rex amicus et socius populi Romani.
A política de Herodes foi sempre apoiar o principal caudilho romano,
posição essa que não era bem vista pelo seu povo em geral. Mas o que
poderia fazer o pequeno reino de Israel frente às águias imperiais cujas
asas estendiam-se por boa parte do mundo europeu e mediterrâneo? Assim
é que os hebreus tiveram que conformar-se em submeter-se ao Regime do
Protetorado. Quanto Herodes o Grande morreu, no ano 4 a.C. ( data que
virou festa judaica), seu reino foi dividido numa tetrarquia entre seus
filhos. O próprio povo, por meio dos altos sacerdotes, intercedeu junto
as autoridades de ocupação para que os poderes tirânicos da dinastia
herodiana fossem limitados por Roma.
A tetrarquia e os procuradores romanos
A Arquelau coube a posição de etnarca ( uma espécie de governador de
província) da Judéia e da Samária, a Herodes Antipas a parte da Galiléia
e da Perea, enquanto que o seu irmão Herodes Filipe ficou com a Iturea e
a Galaunítida. Todos eles inteiramente obedientes ao Legatus Augustae,
ao governador-geral romano da Síria. Este por sua vez se fazia
representar na região através de um procurador cuja sede oficial ficava
na cidade de Cesaréia Marítima, deixando que Jerusalém permanecesse no
controle simbólico do sinédrio, da assembléia dos anciãos responsáveis
pelo Templo Sagrado, presidida por um sumo-sacerdote. Na época de
Cristo, ele chamava-se Caifás. Os romanos, seguindo a tradição de
serem liberais nas questões religiosas, permitiam que os judeus
mantivessem suas cerimônias e se comprometeram a não perturbarem os
rituais ou a profanarem os espaços sagrados deles. Tanto assim que
causou enorme tumulto quando Herodes o Grande, num gesto de querer
agradar os ocupantes, mandara expor uma águia dourada, símbolo romano,
numa das entradas do Templo. Perturbação que obrigou os romanos a
submeterem os hierosolimitas, a população de Jerusalém, ao duro braço da
legião.
A tensão entre a população e os ocupantes era pois constante,
resultando em intermináveis desavenças e amotinamentos que eram
reprimidos sem dó pelos centuriões ( desavenças essas que três décadas
depois da morte de Cristo gerarão a grande rebelião judaica de 66,
seguida da destruição de Jerusalém pelos romanos no ano de 70). Além
das rivalidades que separavam os saduceus (mais conciliadores) dos
fariseus (os “separados”), os escribas e doutores da lei que desejavam
viver o mais próximo possível de acordo com a Lei Mosaica, havia ainda
entre os judeus uma facção extremista, a dos zelotes. Muitos deles
atacavam os romanos, e aqueles que colaboravam com eles, armados com
punhais ( sikos, em grego), dai também serem designados como sicários.
Seguramente foi essa instabilidade crescente que fez com que a
administração romana aumentasse ainda mais a sua presença na região,
transformando o Regime do Protetorado ( que se estendeu de 38 a.C. ao
ano 6 d.C.), onde os tetrarcas tinham certa autonomia, numa a ordem
política mais controlada diretamente por eles: a dos Procuradores
Romanos ( de 6 a 66 d.C.).
Jesus Cristo se indispõe
Em Jerusalém, Cristo sentiu-se indignado com a presença de centenas de
vendedores que ocupavam o adro do Templo para negociarem de tudo,
inclusive pombas a serem dadas em holocausto. Agindo com o cajado na mão
para afastar dali os profanadores, disse que aquele era um espaço
para orar e não mercadejar. A tensão aumentou ainda mais no dia
seguinte. Instalado nas escadas do Templo para pregar a chegada do Reino
dos Céus, logo atraiu a atenção dos escribas e dos fariseus, que
questionaram a presença dele naquele recinto. Viram-no como um um
intruso, um farsante da Galiléia que viera promover a confusão e a
descrença na capital do reino.
Como Jesus fora batizado, uns tempos antes, por João Batista ( o famoso
profeta que, quando preso na fortaleza de Maquerunte, tivera a cabeça
decepada a mando de Herodes Antipas, para antender o pedido da sua
esposa Herodíade), acreditou que não devia dar explicação aos burocratas
do Templo. Como o assédio deles o incomodava, pois não cessavam as
provocações, o Nazareno reservou a eles uma bateria de maldições, sete
no total, nas quais clamou abertamente para que o povo local não
seguisse aquela gente serpentina de dupla cara e atitude hipócrita que
dominava o Templo. Assim, terminou por declarar guerra ao comércio e à
burocracia sacerdotal, tendo ao seu lado somente um punhado de
seguidores que tinham vindo com ele desde a Galiléia.
Não só isso, lançando mão de algumas parábolas, profetizou que os
judeus perderiam em breve o estatuto de ser o Povo Eleito de Deus ( a
mais explicita delas foi a dos “vinhateiros homicidas”, Mateus 21-22),
como por igual imprecou contra Jerusalém acusando-a de matar os
profetas e apedrejar os que eram enviados a ela, vaticinando que “ a
vossa casa ficará abandonada” ( Mateus 23-24). Não é de se estranhar,
assim, que o considerassem como alguém abertamente dissidente do
judaísmo de então.
A última ceia
Entre um dia e outro, ele se recolhia à casa de Simão, o leproso, na
aldeia de Betânia, para mostrar a todos que nada podia assustá-lo. Os
testemunhos indicam que o seu temperamento se alterara naqueles dias
derradeiros. Tornou-se pensativo e tristonho. Em três ocasiões
anteriores ele alertara os discípulos que a vinda dele para Jerusalém
resultaria na sua morte e ressurreição (Mateus 16;17-18;19-20). Na noite
de quinta-feira, véspera da Sexta-feira da Paixão, no jardim de
Getsémani, no Monte das Oliveiras, fez a derradeira reunião com seus
apóstolos. Durante a modesta ceia, quando deu-se a Eucaristia, a
partilha do pão e do vinho entre ele e os seus, previu a traição de um
deles. De fato, Judas Escariotes entregou-o a gente do Templo por 30
moedas de prata. Seguramente deve tê-lo chocado a covarde debandada dos
seus seguidores quando, encerrado o encontro, a guarda chegou para
levá-lo.
Do pretório ao Gólgota
As denúncias recebidas por Caifás, o sumo sacerdote e principal
autoridade teocrática judaica, obrigara-o a mandar deter Cristo. O fato
de se apresentar como Rei dos Judeus colocava-o na posição de agente
subversivo, simultaneamente contra o Templo, que não lhe reconhecia
nenhuma autoridade mística e contra o Governo dos Procuradores instalado
por Roma, (que naquela ocasião era exercido por Pôncio Pilatos). A
briga com os vendilhões e as discussões públicas com os escribas
selaram-lhe o destino.
O julgamento dele foi sumaríssimo. Levado na mesma noite à corte do
Sinédrio, o grande tribunal dos anciãos, Caifás acusou-o de blasfemo.
Crime punido com a morte. Se fosse seguida a lei mosaica ele seria
lapidado. Os romanos encarregados de aplicar o ius gladii, preferiam a
crucificação. Na presença de Pilatos, o prefeito da Judéia (*),
provavelmente instalado na Torre Antônia, ao lado do Templo, para a
decisão final, ele não esboçou nenhum gesto de defesa. A turba que
estava presente - na hora em que o chefe romano lançou mão da venia, o
direito de suspensão de uma sentença proferida - saudou o nome de
Barrabás, um delinqüente local. Cristo, apupado, aceitou o martírio.
No calvário até chegar ao Gólgota, a colina em forma de caveira situada
fora da cidade, ele, além de carregar o lenho, passou pelo inferno das
vergastadas e demais flagelos que os romanos costumavam aplicar aos
sentenciados que padeciam na cruz. Somente as mulheres o acompanharam
até o derradeiro suspiro ( João, o evangelista, assegurou que ele era o
único dos seguidores que estava presente). Pregaram-no na cruz ao lado
de dois ladrões como que para humilhá-lo na sua ambição de apresentar-se
como Rei dos Judeus e filho de Deus.
(*) O procurador Pôncio Pilatos estava em Jerusalém para acompanhar a
páscoa e, com sua presença, evitar a ocorrência de possíveis
perturbações da ordem. Herodes Antipas, o tetrarca, também lá se
encontrava por ocasião do julgamento de Cristo, mas apenas para se fazer
presente naquela ocasião festiva.
Voltaire Schilling
Bibliografia
Armstrong, Karen – Jerusalém, uma cidade, três religiões, S.Paulo, Cia das Letras, 2001.
Bíblia de Jerusalém, S.Paulo, Edições Paulinas, 1985.
Donini, Ambrogio – História do Cristianismo, das origens a Justiniano, Lisboa, Edições 70, 1980.
Daniel-Robs – A Palestina no Tempo de Jesus Cristo, Lisboa, Edições Livros do brasil, s/d.
Richardson, Peter – Herod, king os the jews and friend of the romans, Carolina do Sul, EUA, University of South Carolina, 1996.
Toynbee, Arnold ( dir.) El crisol del cristianismo, in Historia de las
civilizaciones, Madri, Alianza Editorial/Labor, 1988, vol.4.
Fonte: aqui
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