Poucos hão de duvidar que Graciliano Ramos foi um dos maiores escritores
da literatura brasileira. Para muitos, no âmbito do romance, ele seria
simplesmente o segundo melhor de nossa história literária, atrás apenas
do imbatível Machado de Assis, tido e havido como um dos grandes da
literatura universal. Na honradíssima segunda colocação no panteão das
letras nacionais, somente Guimarães Rosa poderia lhe fazer frente, ainda
que, a rigor, só tenha produzido um romance (Grande Sertão: Veredas,
claro). Fora da seara que o consagrou, sabe-se que Graciliano Ramos
amargou alguns meses de cadeia por causa de uma insuspeitada atividade
política, fato narrado por ele mesmo em um de seus livros mais
conhecidos, Memórias do Cárcere (1953), dos melhores em seu gênero
específico. Mas isso se sucedeu em 1936, em virtude da paranoia
anticomunista que se seguiu à Revolta Vermelha, quando o escritor
alagoano já havia adquirido algum reconhecimento graças às suas
primeiras obras: Caetés, de 1933, e São Bernardo, de 1934. Uma faceta
menos conhecida de sua personalidade, porém não menos fascinante, diz
respeito a uma experiência ocorrida nove anos antes de sua prisão, em
1927, época em que se tornou prefeito de uma cidade chamada Palmeira dos
Índios, localizada no interior de Alagoas.
Não seria cabível adentrar nos detalhes relacionados à sua eleição para o
posto. Aos interessados, recomenda-se o livro O Velho Graça, biografia
escrita por Dênis de Moraes merecedora de inúmeras reedições. Mais vale
aqui discorrer um pouco sobre a competência e a lisura com que o futuro
autor de Vidas Secas (1938) desempenhou-se na tarefa, além de demonstrar
um curiosíssimo elo existente entre essa experiência e sua posterior
carreira literária. Em sua rápida passagem pela prefeitura de Palmeira
dos Índios, pois renunciaria ao cargo em 1930, Graciliano Ramos
moralizou as práticas administrativas, saneou as contas do município,
promoveu obras nos bairros pobres e sobretaxou os cidadãos mais ricos.
Tudo isso em um intervalo de pouco mais de dois anos. Para Elio Gaspari,
um dos grandes nomes da imprensa atual, a administração de Graciliano
Ramos nessa pequena cidade alagoana deveria ser tomada como exemplo de
probidade e impessoalidade no trato da coisa pública. Não à toa, o
jornalista costuma recorrer com frequência ao nome do romancista quando
precisa dar alguma lição de moralidade aos nossos políticos, sempre
dispostos a tratar a República como se esta fosse um quintal de suas
casas.
Mais do que administrar bem a cidade em que vivia, Graciliano Ramos
escrevia relatórios periódicos para prestar contas de sua gestão à
comunidade e ao governador. Tais relatórios, como devem saber aqueles
que têm um pouco mais de intimidade com a obra do autor, eram
verdadeiras pérolas literárias, pois já continham, em embrião, aquele
inconfundível estilo contido, sóbrio, de uma correção ímpar, que
caracterizaria a maior parte de seus livros (Angústia, de 1936, seria,
talvez, a exceção à regra). Aquele estilo, como diria o crítico
literário Antonio Candido, em um estudo importante sobre Graciliano
Ramos chamado Ficção e Confissão, no qual se destaca “[…] a suprema
expressividade da linguagem, assim como a secura da visão de mundo e o
acentuado pessimismo, tudo marcado pela ausência de qualquer chantagem
sentimental ou estilística”. Ao se desincompatibilizar da prefeitura,
renunciando ao mandato para assumir a direção da Imprensa Oficial do
Estado de Alagoas, em Maceió, Graciliano Ramos redigiu um relatório
final que seria publicado no Diário Oficial e em outros jornais. Uma
cópia dele acabou chegando às mãos do poeta e editor Augusto Frederico
Schmidt, que, impressionado com a singularidade da escrita, ao ficar
sabendo que o ex-prefeito preparava um romance (Caetés), garantiu sua
publicação antes mesmo de a obra ficar pronta. E assim se sucedeu. Anos
depois esses relatórios sairiam em livro numa edição póstuma
intitulada Viventes das Alagoas (1962). Vale a pena recorrer a uma
citação algo longa para que se possa comprovar os precoces traços de
estilo presentes nesses relatórios, transcrevendo alguns trechos do
primeiro deles, de 1928:
“Ao governo de Estado de Alagoas
Exmo Sr. Governador:
Trago a V. Exa. um resumo dos trabalhos realizados pela prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928.
Não
foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim, minguados,
entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as
condições em que o Município se achava, muito me custaram.
COMEÇOS
O principal, o que sem demora iniciei, o
de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma
ordem na administração. Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os
cobradores de impostos, o comandante de destacamento, os soldados outros
que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua
administração particular, com prefeitos inspetores de quarteirões. Os
fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.
Para
que semelhante anomalia desaparecesse, lutei com tenacidade e encontrei
obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência
mole, suave, de algodão em rama, fora, uma campanha sorna, oblíqua,
carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso
Senhor, que administra melhor que todos nós; outros me davam três meses
para levar um tiro. Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano
passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam
coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem
as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a
eles.
[…]
ADMINISTRAÇÃO
A
administração municipal absorveu 11:457$497 – vencimento do prefeito, de
dois secretários (um efetivo, outro aposentado), de dois fiscais, de um
servente, impressão de recibos, publicações, assinatura de jornais,
livros, objetos necessários à secretaria, telegramas. Relativamente à
quantia orçada, os telegramas custam pouco. De ordinário vai para eles
dinheiro considerável. Não há vereda aberta pelos matutos, forçados
pelos inspetores, que prefeitura do interior não ponha no arame,
proclamando que a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas
históricas ao governo do Estado, que não precisa disso; todos os
acontecimentos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha –
um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua – um telegrama; porque o
deputado esticou a canela – um telegrama. Dispêndio inútil. Toda gente
sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que não choramos e
que em 1556 D. Pedro Sardinha foi comido pelos Caetés.
[…]
TERRAPLENO DA LAGOA
O
espaço que separa a cidade do bairro da Lagoa era uma coelheira imensa,
um vasto acampamento de tatus, qualquer coisa deste gênero. Buraco por
toda a parte. Durante meses mataram-me o bicho do ouvido com reclamações
de toda ordem contra o abandono em que se deixava a melhor entrada para
a cidade. Chegaram lá pedreiros, outras reclamações surgiram, porque as
obras irão custar um horror de contos de réis, dizem. Custarão alguns,
provavelmente. Não tanto quanto as pirâmides do Egito, contudo. O que a
prefeitura arrecada basta para que nos não resignemos às modestas
tarefas de varrer as ruas e matar cachorros. Até agora as despesas com o
serviço da Lagoa sobem a 14:418$627. Convenho em que o dinheiro do povo
poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro
menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra,
cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se distribuísse com os
meus parentes, que necessitam, coitados.”
Mesmo se tratando de uma amostra pequena, versando sobre coisas
comezinhas, já se percebe nesse relatório a manifestação de uma
verdadeira “personalidade literária”. Daí a acreditar que essa
“personalidade” poderia se tornar um escritor viável vai, é claro, uma
enorme diferença. Sendo assim, não se pode deixar de louvar o faro
editorial de Augusto Frederico Schmidt, cuja perspicácia de poeta
possibilitou a revelação de um dos maiores prosadores da língua
portuguesa, algo que nem ele, obviamente, sequer poderia ter imaginado.
Sua iniciativa ajudou a enriquecer não só a literatura mas também o
cinema daqui, visto que nenhum outro romancista brasileiro teve a sorte
de ser tão bem adaptado na transposição de uma linguagem para outra como
Graciliano Ramos. Basta dizer que três de seus principais livros deram
origem a três grandes filmes: Vidas Secas (1963) e Memórias do
Cárcere (1984), dirigidos por Nelson Pereira dos Santos; e São
Bernardo (1972), dirigido por Leon Hirszman. Como tais adaptações
mereceriam uma postagem à parte, é melhor parar por aqui, ao modo dos
folhetins, deixando o leitor na expectativa pelo próximo capítulo,
sabendo ele desde já que os inúmeros “veios” abertos pelo escritor
alagoano não se esgotam facilmente.
Por Rodrigo Morais
Fonte aqui

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