“Arrumar livros é uma atividade reveladora”, disse Alberto Manguel, um
bibliófilo e escritor argentino muito afortunado, que exerceu ao longo
da vida a invejável profissão de ler livros à serviço de editoras. No
meu caso, sempre que arrumo as estantes, acabo por voltar ao tempo em
que escolhi a filosofia como forma de viver. Considero-me também um
bem-aventurado, pois há trinta anos venho realizando o prodígio de
sobreviver às custas do que aprendi com os moradores das minhas
prateleiras. Desde que guardei o diploma de bacharel de direito em uma
gaveta e tomei a decisão de migrar para a terra ignota da filosofia, é
aquela ilustre corte de amigos sábios que mora nas prateleiras da casa
que paga as minhas contas, um verdadeiro milagre para alguém que vive na
periferia do mundo.
Cada vez que digo que sou filósofo, e bem sei o quanto isso semelha
pretensioso, percebo no interlocutor aquele mesmo incômodo expresso por
Montesquieu em suas Cartas Persas. Como alguém pode ser persa? E como
alguém pode ser filósofo? Seria uma espécie de fatalidade? No meu caso,
receio que sim. Muito cedo fui impulsionado pela filosofia, embora não
tivesse a menor ideia disso. Apegado à leitura de enciclopédias e de
escritores com pendores metafísicos, era natural que eu tivesse
interesse pelas questões especulativas. Qual é a origem das coisas? Para
onde vamos depois que morremos? Será que as cores que eu vejo são
vistas do mesmo modo pelos outros? Só muito mais tarde descobri que
essas indagações eram consideradas filosóficas. E melhor ainda: graças a
um amigo que prestou vestibular para o curso de filosofia, descobri que
era possível ganhar minimamente a vida refletindo sobre essas
perguntas.
É sempre muito embaraçoso responder a alguém que pergunta sobre a minha
profissão que vivo da filosofia. O outro me olha com um misto de
fascínio e desprezo. A filosofia tem a reputação de ser um conhecimento
hermético, quase inacessível. Por outro lado, a pergunta sobre o que
fazemos na vida busca saber, no fundo, se somos finalmente
bem-sucedidos, sobretudo em termos materiais. Como sugeriu Simon
Blackburn, seria mais fácil apresentar-me como “engenheiro conceitual”,
pois isso poderia me colocar em melhores trajes. Contudo, embora por
vezes eu simplifique a conversa apresentando-me como professor
universitário, dependendo do interlocutor prefiro assumir a condição de
filósofo, de modo irônico, exatamente para causar surpresa e suscitar a
indulgência do desprezo.
E o que faz um filósofo? O óbvio seria dizer que um filósofo pensa.
Porém, o que há de extraordinário nisso? Afinal, todas as pessoas não
pensam? Sim, a diferença é que o filósofo prolonga aquelas perguntas que
as pessoas costumam fazer sobre si próprias e sobre o mundo, mas que
logo desistem de seguir perguntando, por perceberem que tais indagações
não possuem uma resposta definitiva. Dizia o poeta Valery, com justeza,
que a filosofia é apenas a busca laboriosa daquilo que naturalmente
todos sabem. E o maior labor, nesse caso, consiste em refletir sobre a
própria estrutura do pensamento e em criar conceitos, sempre com auxilio
de outros sujeitos que ao longo da história se deram ao trabalho de
fazer o mesmo.
São tais sujeitos que ocupam as várias estantes de minha casa. A cada
arrumação, confirmo ou modifico minha relação com eles. As prateleiras
mais importantes reproduzem o trajeto histórico da filosofia, dos
antigos gregos à contemporaneidade. As subsidiárias são dedicadas a
temas filosóficos específicos. Desse modo, alguns filósofos ocupam um
lugar de menor destaque, na condição de estudiosos de um determinado
assunto. Mas com o tempo eles podem mudar de status, migram, passando a
ocupar um lugar próprio. Foi assim com Wittgenstein, cujos livros
ocupavam os armários destinados à filosofia da linguagem. Hoje o
filósofo tem um espaço todo dele, logo após as prateleiras dedicadas a
Heidegger.
Alberto Manguel, esse cara bem-aventurado que, aos 16 anos, quando
trabalhava numa livraria em Buenos Aires, conheceu Borges que lhe pediu
para que lesse para ele em sua casa, escreveu um lindo livro sobre as
bibliotecas e seus guardiões. No entender de Manguel, toda coleção de
livros é autobiográfica. Bibliotecas falam de quem as constituiu, de seu
conhecimento e de sua ignorância, de sua lembranças e de seu
esquecimentos. No meu caso, o caos unificador da ordenação das
prateleiras não tem sentido, mas bastante sentimento. Ele se pauta em
afinidades que estão em constante devir. Arrumar livros para mim é uma
atividade afetiva. Como Maquiavel exilado em San Casciano Val di Pesa, a
cada arrumação penetro na corte dos habitantes das prateleiras, onde
sou recebido amavelmente. Converso com esses homens do passado, nutro-me
daquele alimento que é unicamente meu, para o qual nasci. Enquanto
escrevo mais uma crônica confessional, às minhas costas, um ilustre
morador das estantes de minha casa com sotaque portenho, sempre migrando
nas prateleiras, balança a cabeça e zomba de mim.
Eduardo Rabenhorst
Fonte wscom
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