sábado, 26 de agosto de 2017

Filosofia serva da teologia? Ao modo de Jesus, pode ser

Divino, para os gregos, era o mais sublime, poderoso e belo já presente no humano
Os filósofos gregos antigos desafiavam-se a refletir sobre a vida com tudo o que brotava da existência humana, inclusive a crença e a relação do homem com a(s) divindade(s). (Divulgação/ Pixabay)

Nasceu na Idade Média a ideia de que a filosofia e a teologia têm uma relação de complementaridade hierárquica, de modo que a “ciência sobre Deus” deveria servir-se da “ciência sobre o homem”, para criar suas ideias e o logos sobre a vida do homem teria lugar e função estritamente propedêuticos para alcançar o logos divino cristão. Em vista de uma relação mais madura e mais proveitosa entre as duas ciências e em defesa da liberdade filosófica, é necessário discordar. E discordar com o próprio Jesus.

No evangelho de Mateus, quando os discípulos questionaram a Jesus sobre a grandeza que poderiam alcançar como discípulos, o Senhor lhes respondeu dizendo que “aquele que quiser ser grande entre vós, seja o servidor” (Mt 20, 27). Essa fala pode ajudar a iluminar o tema da relação entre filosofia e teologia. Apesar de não mencionar a ciência ou setores do saber humano, Jesus indica aí uma possível solução para a pretenciosa afirmação da grandeza de uma sobre a outra. Na própria comunidade cristã, Jesus interpela os discípulos a não buscar sobreporem-se uns aos outros, mas a servirem-se mutuamente. Se cada seguidor do Cristo praticar essa norma, o resultado será a inexistência de desigualdades valorativas de qualquer espécie e formar-se-á uma comunidade de servidores diferentes que, ao ajudarem-se mutuamente, serão capazes de construir uma sociedade sem “chefes que dominam como senhores absolutos” ou “grandes que oprimem com seu poder”. Com tantos conflitos antropológicos e epistemológicos contra a diversidade do humano, atualmente, essa é uma perspectiva libertadora, realmente. Libertadora não só da filosofia outrora ancila da teologia, mas libertadora do próprio pensamento humano. Como acontecia antes de nascer essa pretensão à superioridade.

Os filósofos gregos antigos praticavam o pensamento sobre a realidade numa perspectiva de liberdade bastante peculiar: desafiavam-se a refletir sobre a vida com tudo o que brotava da existência humana, inclusive a crença e a relação do homem com a(s) divindade(s). O que era possível graças ao tipo de fé que aquele povo vivia. Divino, para os gregos, era mais sublime, poderoso e belo já presente no humano. Cada deus narrado por Homero tinha sua identidade afirmada através de características humanas e não havia traço da humanidade que não pudesse ser encontrado no divino. Ademais, a fé dos gregos era contemplativa e dialogal ao mesmo tempo em que prática e pouco normatizada. Ponto crucial para o próprio surgimento da filosofia na Grécia. Com essa liberdade e harmonia entre as naturezas humana e divina, o homem grego foi capaz de realizar o milagre do pensar. Pensava em si mesmo a ética, a linguagem, a política, a lógica, questionava a totalidade da existência ao mesmo tempo em que relacionava seu pensamento a questões metafísicas naturais e à fé nos deuses ou na existência do divino. O resultado foi um crescimento amplo em termos políticos, científicos, sociais e outros.

Essa brisa grega suave continuou na Idade Média e cruzou as fronteiras da Europa Ocidental. No caminho de volta encontrou uma questão fundamental: podemos pensar a existência sem o divino? Houve respostas que apresentaram um problema até hoje desafiador: a dificuldade de alguns filósofos em assumir a complexidade da existência, necessitando então assegurar a ideia de que a afirmação do divino deveria, para ser válida, negar algo do pensamento humano. Deu-se então a separação e a rixa: a teologia medieval, com Tomás de Aquino, propôs abertamente a philosophia ancilla theologiae (filosofia como serva da teologia). Injusto retrocesso!

Filosofia e teologia por muito tempo se deram juntas, inclusive dentro do cristianismo. O Evangelho de João dialoga profundamente com a cultura grega, mais até: foi escrito nela imbuído de filosofia. Paulo pregava nas ágoras, era interlocutor filosófico ávido!

Atualmente, nas faculdades de teologia, é necessário cursar dois ou três períodos de filosofia antes de adentrar os estudos teológicos. Isso é muito bom e não indica necessariamente qualquer sinal de desvalorização da filosofia por parte da teologia, pelo contrário, afirma a importância dessa. A cinca está em pretender que a filosofia tenha sempre que contar com algum motor imóvel ou que ela vá, inelutavelmente, ser marcada por um horizonte transcendental de possibilidade que seja divino, obrigando todos os filósofos a serem agostinianos inconscientes. Em última análise, Filosofia e Teologia são saberes tangentes. Pensar Deus tem sentido na medida em que ele está para o homem, ao mesmo tempo em que quando o homem se pensa e reflete sobre a existência, ele pode, nalgum momento, chegar a afirmação dalguma crença divina. Ele pode lidar com os limites do conhecimento, com o desconhecido do humano e da vida aceitando-os como mistério ou encarando-os como umbrais do saber numa humanidade que se dá aberta à crença, mas não obrigada a ela. Em outras palavras, não há qualquer obrigação teológica que a filosofia deva cumprir ou pressupor.

Lembro-me uma vez que um seminarista celebrou a quinta-feira santa numa comunidade do interior e o lava-pés demorou ao menos meia hora. Acontece que ele lavava cada pé com sabão. Demorou bastante, mas os apóstolos ficaram limpíssimos. Se, mesmo vislumbrando a riqueza da complexidade e a possibilidade da harmonia independente entre filosofia e teologia, esta se propuser senhora da filosofia, tenha em mente essas duas ideias: seremos todos grandes quando servirmo-nos uns aos outros e, se vais “obrigar” a filosofia a te lavar os pés, deixe que ela tire seus excessos e faça aparecer limpo o humano que aí está.

Por Vitor Júnio Félix Fernandes

Nenhum comentário: