Era um coquetel de lançamento. A certa altura fui à longa
mesa coberta de toalhas brancas para devolver ao garçom um morto e receber um
vivo. Um cara que eu conhecia de vista aproximou-se. Brindamos, lustramos
algumas frases polidas encontradas nos bolsos, e daí a pouco ele me veio com
essa: “Estou até lhe devendo um pedido de desculpas. Uma vez fiz um mau juízo do
seu caráter.” Era um cara corajoso,
porque na minha terra dizer isso é motivo para execução sem reza. Ainda bem que
a barbárie da metrópole me civilizou.
“Mas, por que?!”, exclamei, misturando surpresa e bom humor.
Ele disse: “Um amigo nosso me mostrou uma crônica sua em que você escarnece
de Borges. Ora, escarnecer do maior escritor do século XX é uma coisa
inadmissível, não acha?” “Eu, escarneci
de Borges?”. Meu espanto não tinha limites. Eu faço piadas até com a minha
falecida mãe, quanto mais com Jorge Luís Borges.
“Devo ter dito alguma ironia,” falei, “mas não houve
intenção de ofender, eu sou um grande fã de Borges.” Pensei que isso era o bastante, mas ele voltou à carga: “Não,
você não é fã de Borges. Você é um leitor casual. Se fosse fã estava vestido
como eu.” Só então reparei que, sob o
casaco de couro, ele estava usando uma camiseta com a imagem do autor do
“Aleph”, uma daquelas fotos dele sentado, com as mãos pousadas sobre o castão
da bengala.
Alguém já disse que um fanático é um sujeito que não muda de
opinião nem de assunto. O impulso de ser fã – de ter uma admiração
incondicional e permanente por algo ou alguém – não está somente em quem gosta
de “Star Trek” ou do “Senhor dos Anéis”. Existe também entre os admiradores da
arte erudita. Basta ver as cerimônias que os fãs de James Joyce realizam todo
ano no “Bloomsday”, 16 de junho, o famoso dia em que transcorrem os
acontecimentos do livro “Ulisses”. No mundo inteiro o pessoal se fantasia, se
reúne em pubs, toma cerveja Guiness, recita e canta coisas relativas a Joyce e
à Irlanda. Muitos são eruditos, PhDs, críticos vetustos, autores premiados; mas
nesse dia adolescem todos, todos se tornam tão fãs quanto um guri fantasiado
com os óculos e a vassoura de Harry Potter.
Já escrevi aqui sobre um depoimento de Antonio Cândido
confessando as brincadeiras de fãs que eles e seus colegas, jovens, faziam
tendo por tema os romances de Eça de Queiroz. Temos uma tendência a achar que a
instituição do “fandom” foi criada por Hollywood, a qual apenas a
industrializou e reexportou. Fãs, nesse sentido, já eram os estudantes
paulistanos que em 1886 foram aplaudir Sarah Bernhardt no Teatro São José, e
desatrelaram os cavalos de sua charrete, puxando-a eles mesmos até o Grande
Hotel, com a diva dentro.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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