sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Sagarana: "O duelo"

(ilustração de Poty para Sagarana)
 
Este era o título do filme que Paulo Thiago dirigiu em 1973, adaptando o quarto conto do livro de Guimarães Rosa, cujos 60 anos comemoramos recentemente. Estou comentando devagar os contos do livro, pela ordem. Um dos temas que os costuram é o tema da ida e volta, já prenunciado numa das epígrafes do próprio livro (“for a walk and back again”).  Em “O Duelo” esse tema ganha um desenho novo, inclusive com uma nova epígrafe em que cabe a uma piranha dar “um pulo de ida-e-volta”.
Porque “O Duelo” é a história de dois homens armados, cada um deles em busca do outro para matá-lo, mas é uma busca vagarosa, em que os dois vão e vêm a cavalo de vila em vila, sem pressa, colhendo pistas, pedindo informações, largando manobras de despistamento, num jogo de negaceios em que ambos estão literalmente indo e voltando o tempo todo.
É o que, segundo um comentário de Jorge Luis Borges, Julio Verne chamava de “duelo à americana”: dois homens juram-se mutuamente se morte, armam-se, preparam-se e se embrenham num bosque, um à caça do outro:
Fosse isto aqui uma aula e eu passaria como dever de casa a tarefa de rastrear os lugarejos que os dois pistoleiros percorrem, discriminando (se possível) quais são os lugares reais e quais os inventados, porque todos fazem parte da saborosa toponímia rosiana: o Borrachudo, as Tabocas, as Catorze-Cruzes, o Dêcámão, a Piedade do Bagre, o Cuba, a Sela do Ginete, o Mosquito, o Paredão do Urucuia, as Abóboras... 
Quem sabe uma busca como essa não descobre que os dois cavalgarilhos acabam traçando um símbolo esotérico qualquer, com seus vais e seus vens, tal como o nome escrito ruas afora pelo traçado das caminhadas do personagem de Paul Auster na “Trilogia de Nova York”? Com Guimarães Rosa, desconfie-se de tudo!
A história: Turíbio Todo pega no flagra sua mulher Dona Silivana (que “tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta”) em plenos folguedos com um tal de Cassiano Gomes, “ex-anspeçada do 1º. pelotão da 2ª. companhia do 5º. Batalhão de Infantaria da Força Pública”. Vê sem ser visto; a prudência pode mais do que a revolta, e Turíbio, que é um capiau papudo e solerte, espera pelo dia seguinte, quando embosca o desafeto e planta-lhe à distância uma bala na nuca.
Quis o Roteirista do Mundo que o vulto alvejado, de longe e de costas, fosse o irmão de Cassiano, muito parecido com ele, e após o enterro a quase-futura-vítima já entendeu tudo e começa os preparativos para caçar o marido metido a brabo, que à essa altura já deu às de vila-diogo e se embrenhou sertões adentro, bem amontado.
E lá vão os dois, cada qual com seus armamentos e seus planos, costurando os vales, prontos para o entrevero, porque, claro, “quem puder mais é que vai ter razão”. Fazem ziguezagues, pegam pistas que não dão em nada, “e, perto do Saco-dos-Cochos, eles cruzaram, passando a menos de um quilômetro um do outro, armados em guerra e esganados por vingança”.
Quem conhece o Grande Sertão: Veredas conhece o lado épico e heróico da violência em J. G. Rosa.  Este lado está presente, em Sagarana, no último conto, “A Hora e Vez de Augusto Matraga”. Mas o que tantas outras vezes aparece na obra do mineiro é o lado não-épico e não-heróico, a violência como uma brutalidade pequena, de irrompe no cotidiano e em questão de segundos desgraça uma vida, às vezes duas.
Há um longo interlúdio no meio do conto: o encontro de Cassiano e depois de Turíbio Todo com Chico Barqueiro, que faz travessia de margem a margem do rio, um encontro que começa com uma equivocada troca de tiros entre eles. Chico dialoga primeiro com um, que vai embora, depois com o outro, a quem atravessa na balsa.
O ir e voltar no balseiro, sempre rumo à “outra banda do rio” dá-lhe uma posição estratégica na narrativa, de ser ponto-atrator de um encontro que por um triz não se cumpre. Durante a travessia, o barqueiro fala, fala, sempre de outros assuntos. Turíbio, nada. Até que: “A terra veio avançando. Encostaram no abicadouro. Turíbio pagou”.
A narrativa é toda polvilhada dos aforismos, provérbios e ditos sentenciosos de que Rosa era mestre, não apenas de ouvido mas de imaginação, como quando Turíbio Todo, depois de cruzar dois rios seguidos, refuga diante de um terceiro, e afirma, como quem lembra um mote: “quem passa três rios grandes esquece o seu bem-querer...”
O bem-querer dele, Dona Silivana, “a mulher fatal da história”, continua se encontrando com Cassiano Gomes, que regressou ao arraial ao sentir o agravamento de um mal cardíaco que motivara seu desligamento da polícia. Os desencontros, principalmente aquele patrocinado passivamente pelo barqueiro, acabam esmorecendo a perseguição mútua, pois, enquanto Cassiano retorna, Turíbio parte para São Paulo, talvez com o mesmo sonho irrealizável do Lalino Salãthiel de “A Volta do Marido Pródigo”.
Cassiano vende o que tem e parte para uma última visita à mãe, que mora longe. Vai parar num lugarejo “onde a gente não tinha vontade de parar, só de medo de ter de ficar para sempre vivendo ali”. O coração afracado o cansa. Ele faz pouso, faz amizade com um capiau baixinho, dá-lhe dinheiro, salva-lhe o filho doente, torna-se padrinho.
E nas vascas de morrer tem uma longa conversa com o capiau, Timpim  Vinte-e-Um, conversa tão secreta que nem o autor conseguiu escutá-la:
Mandava o dinheiro para a mãe? Não. Mandou vir o Timpim, para nele rever a boa ação. Conversaram. Depois o moribundo disse:
– Esse dinheiro fica todo para você, meu compadre Vinte-e-Um...
Aí, tomou uma cara feliz, falou na mãe, apertou nos dedos a medalhinha de Nossa Senhora das Dores, morreu e foi para o Céu.
Turíbio toma ciência do passamento do desafeto e volta de São Paulo; será sua última volta. As cidades grandes aparecem na obra de Guimarães Rosa sempre indiretamente, através de seus reflexos nas pessoas (Lalino Salãthiel é um dos melhores exemplos), e o mesmo se dá com o papudo Turíbio:
Saltou do trem também com uma piteira, um relógio de pulso, boas roupas e uma nova concepção do universo.
Um capiau concebendo o universo! Eu não imagino uma liberdade como essa num texto de Afonso Arinos, Simões Lopes Neto, José Américo de Almeida ou José Lins do Rego. Não que esses sejam fracos, mas é que trabalhavam num quadro limitado de referências regionalistas. Guimarães Rosa explodiu o quadro e o recompôs num quadro muito maior, onde cabia tudo que ele próprio sabia. Seus matutos vivem num mato muito maior e mais visível.
Mas pobre do Turíbio, não tem quadro, mesmo recomposto, onde o Destino das tragédias gregas não esteja de emboscada, mesmo que seja na figura de “um cavalinho ou égua, magro, pampa e apequirado, de tornozelos escandalosamente espessos e cabeludos, com um camarada meio-quilo de gente em cima”.
O autor, sem revelar o nome do capiauzinho (que a essa altura o leitor mais obtuso terá adivinhado) o faz acompanhar Turíbio ao longo de algumas páginas, conversando, picando fumo, aproximando-se cada vez mais do inevitável desfecho, até que:
– Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!
E Turíbio, assustado pelo imprevisto da coisa, “sentia o medonho que é a falta de tempo para a gente poder pensar”, a vertigem do “No Time To Think” que Bob Dylan encapsulou numa canção sobre os últimos segundos de vida de um guerreiro.
Turíbio sente a queda da Morte sobre si e ainda tem um último reflexo de valentia:
E levantou a mão à testa, se benzendo, com voz gritada, em que o choro já começava a tremer:
– Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém!... Padre nosso...
Mas, não! Assim como um carneiro, não! Curvou de banda e puxou o revólver, e foi um golpe de rédeas e outro de esporas, fazendo o cavalo se empinar.
Mas a garrucha não negou fogo. Turíbio Todo pendeu e se afundou na sela, com uma bala na cara esquerda e outra na testa. O cavalo correu; o pé do defunto se soltou do estribo. O corpo prancheou, pronou, e ficou estatelado.
“O Duelo” é na verdade a história de um duelo que não chega a acontecer, porque Turíbio atirou somente no irmão de Cassiano, e Cassiano não atirou em ninguém, apenas delegou a Timpim Vinte-e-Um o encargo de fechar o circuito e empatar o jogo mortal. Numa hipotética antologia intitulada Contos de Vingança e Justiçamento, esta história caberia com louvores.
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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