sábado, 4 de fevereiro de 2017

Mais que um craque



Em "Tempos vividos, sonhados e perdidos", Tostão alia conhecimento, reflexão e ótimo texto para tratar de futebol e do ser humano.

Tostão, autor de Tempos vividos, sonhados e perdidos

Tostão foi um desses astros que baixavam no corpo de outras pessoas, quando elas jogavam bola. Baixou no André Sant’Anna, no conto A história do futebol (livro Entre as quatro linhas): “Quando o futebol foi inventado, em 1969, o George Harrison era de Belo Horizonte e, no prédio dele, na escola dele, na rua dele, as pessoas ou eram Atlético ou eram Cruzeiro. O primo do George era Atlético. O George era o Tostão, do Cruzeiro”. Mas ter sido um craque, um ídolo, não o define. A fama da época não o fez deitar em lugar nenhum. Ao terminar a carreira no futebol, por questão de saúde, antes de completar 30 anos — normalmente o auge de um atleta —, foi estudar medicina. Na década de 1990, voltou a se ligar ao futebol, como comentarista. E passou a escrever para jornais de grande circulação. Logo chamou atenção pela qualidade do texto. Não à toa. Enquanto se firmava como jogador de ponta, ele lia. Lia muito e bem, como revela ao longo de Tempos vividos, sonhados e perdidos — um olhar sobre o futebol. A literatura costura suas lembranças e reflexões sobre o futebol e além:

Quando jogava no Cruzeiro, costumava ir para a concentração com algum livro para ler (Herman Hesse, Clarice Lispector, Jorge Amado, Fernando Sabino e outros) e com discos do Chico Buarque, Caetano Veloso, Tom Jobim, Edu Lobo João Gilberto...

O que esse livro traz de mais relevante é isto: Eduardo Gonçalves de Andrade não é só o Tostão que jogou futebol, não é só o médico, marido, pai, amigo, nem somente o que faz hoje, escrevendo sobre o esporte. Ele é alguém que pensa e repensa sobre tudo, em conexão. Alguém que mudou ao longo do tempo, e que muda. Exerce vários papéis como todas as pessoas, não se permite praticar o verdadeiro esporte nacional no Brasil: o reducionismo.

Tostão cita Guimarães Rosa, Drummond, João Cabral, e até o contemporâneo Nuno Ramos, de quem pega emprestado trecho do texto Os suplicantes, que expressa de forma concisa sua vivência no futebol: 

Tudo parece fácil e concatenado quando ganhamos; tudo parece disperso e difícil quando perdemos. No entanto, é por tão pouco que se ganha e se perde. O apito final estabiliza violentamente aquilo que, no transcorrer do jogo, parece um rio catastrófico de mil possibilidades, a nos arrastar com ele.

Já pensou se ao fim de uma partida, sangue fervendo, pupilas dilatadas, veias explodindo, um jogador pudesse elaborar assim a um radialista que pergunta como foi o jogo? Cada coisa na sua hora e lugar.
Em alguns trechos, o autor resgata e resume a própria história do futebol e também traz contextos históricos de fora do campo. São bem-vindos, e o modo como compila esses dados são também muito próprios.

Recentemente, vi na íntegra algumas partidas da Copa de 1958, disputada na Suécia. A Seleção era melhor do que eu imaginara. Tinha Pelé e Garrincha juntos, os dois maiores jogadores da história do futebol brasileiro, além de Didi, Nilton Santos e outros supercraques. Individualmente, deve ter sido superior à Seleção de 1970. Com Pelé e Garrincha, o Brasil nunca perdeu um jogo. Alguns jornalistas dizem que os primeiros três minutos do jogo entre Brasil e Rússia, o terceiro do Mundial de 1958, foram os mais espetaculares da história do futebol. Aquela seleção brasileira foi o início da passagem do jogo natural, amador, espontâneo, para o futebol coletivo, organizado, profissional. No entanto, pelo estilo mais lento e pelos longos espaços entre os setores do campo, era algo que fazia parte do futebol mais antigo, das décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960. A seleção de 1970, revolucionária para a época, mais disciplinada taticamente, com um jogo mais veloz e mais preocupada com a marcação sobre os adversários, foi o início do futebol moderno de hoje, embora o jogo fosse de intensidade e velocidade incomparavelmente menores que os atuais. Os jogadores de hoje, com excepcional preparo físico, jogam outro futebol. Se continuarem a correr cada vez mais, no futuro, será outro esporte.

Em trechos como esse, o leitor se aproxima de um entendimento sobre outra realidade, de outra época, que geralmente chega aos tempos atuais cheio de imprecisões, impregnado de mitos. O grande pano de fundo e objetivo parece ser o de entender e explicar como o futebol brasileiro evoluiu ao longo das décadas, até hoje, ou pelo menos até a Copa do Mundo de 2014. A Copa do 7 a 1. E nesse caso fica evidente que evolução é um termo que não significa melhora, mas vem do sentido dado por Darwin, de adaptação, mudança ao longo do tempo, a depender de diversos fatores do ambiente.

As páginas finais são mais dedicadas a essa análise de como se joga bola atualmente. Por isso mesmo, menos graciosas, apesar de importantes. Mas o que marca a obra é a mescla desse resgate histórico com passagens de bastidores, impressões e contextos.

Convivi com Pelé, quando a seleção brasileira se encontrava, de 1966 a 1972. Nunca o vi mal-humorado, triste, preocupado. Atendia a todos, sempre com um largo sorriso. Parecia gostar de ser o Pelé, o Rei. Parece óbvio, mas não é, pois são frequentes, com as celebridades, os atritos entre a personagem, o ídolo, a criatura e o indivíduo, o criador.

Ele conta logo depois disso o que pouco se fala do passado, que Pelé teve anos de decadência entre as copas de 66 e 70. E que foi um trabalho sério e bem-sucedido que devolveu suas habilidades físicas para aquele mundial do tricampeonato brasileiro. Isso não diminui ninguém, pelo contrário: nos faz entender como Pelé conseguiu ser gigante em fases bem diferentes do mesmo esporte.

Mas o forte do livro são as reflexões. Tostão toca em assuntos ainda hoje pouco abordados, como a relação dos ditadores militares com a seleção brasileira e a alienação dos atletas e de boa parte do povo. Na volta da Copa de 70, ele pensou em não ir a Brasília, receber o cumprimento do Médici. Acabou indo. Na recordação daquele momento, evoca a psicologia e a literatura:

Freud gostava de repetir uma frase de Shakespeare: “A consciência faz de todos nós covardes”, no sentido de que o ser humano, com frequência, dividido entre os compromissos éticos e morais e seus verdadeiros desejos, que moram nas profundezas da alma e que nem sempre são compatíveis com seus deveres sociais, deixa de lutar pelo que pensa e por suas ambições.

O livro tem dois capítulos escritos por convidados. Um é o médico Roberto Abdalla Moura, responsável pela recuperação da vista de Tostão, depois de um descolamento de retina, para jogar a Copa de 70. O outro é Juca Kfouri, que escreve sobre a corrupção do futebol a partir de seu órgão máximo de regulação burocrática, a Fifa, além da CBF no Brasil. São capítulos que não destoam da narrativa de Tostão ao longo da obra. Pelo contrário, somam.



O forte do livro são as reflexões. Tostão toca em assuntos ainda hoje pouco abordados, como a relação dos ditadores militares com a seleção brasileira e a alienação dos atletas e de boa parte do povo.

Tostão é uma pessoa difícil de se criticar. Aliás, ele próprio é que traz no livro episódios em que alguém ficou bravo com ele, por causa de uma crítica feita nos comentários ou colunas. Mesmo as pequenas contradições reforçam seu caráter. Em um momento ele celebra a malandragem de Nilton Santos na Copa de 62, quando o brasileiro dá um passo para fora da área após fazer pênalti num jogador espanhol e convencer o juiz de que tinha sido mesmo fora a falta. Mas hoje pensa diferente:

Desde o passado, os jogadores brasileiros usam a esperteza, as simulações e as violações das regras e da ética para levar vantagem. O mesmo ocorre em outras atividades humanas. O jogador poderia argumentar que, no instante do lance, na emoção do jogo, na busca do sucesso, ele, sem pensar e sem racionalizar, age mais por impulsos e por desejos diabólicos, presentes nas profundezas da alma. Nada disso justifica ele não ser punido. Somos todos responsáveis por nossos atos.

Essa não-separação entre o que se chama mundo do futebol e o mundo de todos é uma das fortes características do livro ou mesmo do pensamento de Tostão — e que o diferencia muito (e para melhor) nesse meio.

O AUTOR

Tostão
Campeão do mundo como jogador de futebol, na Copa de 1970. Médico, comentarista e colunista sobre futebol em tevês e jornais. É autor de A perfeição não existe (Três Estrelas, 2012) e de Lembranças, opiniões, reflexões sobre futebol (DBA, 1997).

ANDRÉ ARGOLO

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Nasceu em Santos, em 1974. Produz vídeos sobre livros e autores para a Global Editora e mantém parceria com o site Publishnews. Outros textos podem ser lidos no incuravelcronica.blogspot.com.br.

(Disponível em: http://rascunho.com.br/mais-que-um-craque/. Acesso em: 30 janeiro 2017.)




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