sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

As Ocupações e o lugar público do desejo

As ocupações construíram espaços de desejo, nos ensinaram que podemos fazer política com poesia, autogestão, com amorosidade


 Divisor, Lygia Pape (Foto: Reprodução)

Dedico este texto aos estudantes das ocupações das universidades deste Brasil, em especial, aos estudantes da Faculdade de Educação da UFRGS

Em tempos de dureza profunda em todas as dimensões do que chamamos humano, parece que perdemos a capacidade de desejar, de amar. Por vezes piegas em demasia, por outras, restrito ao espaço privado, o amor desejante, aquele que não mata, mas potencializa a vida – precisa recuperar suas forças. Nietzsche em sua obra Gaia ciência pergunta: o que é viver? E diz: “Viver – é continuamente afastar de si algo que quer morrer”. Esta é ambiguidade de quem deseja a vida, afastar continuamente a morte, mesmo que seja presente. E nesta relação de ausência-presença, por ora morremos, por ora vivemos. Contudo, a vida nasce assim em seu desejo mesmo de continuar vivendo. Vida e desejo se conjugam. Em uma sociedade onde os desejos são fabricados, a vida nos escapa e com ela qualquer possibilidade de sonhar, pois o desejo nos movimenta, nos desloca para o porvir, sempre incerto – mas que encanta porque é anúncio e esperança de mais vida. O desejo fabricado confunde-se com a necessidade criada, aquela que se alimenta da saciedade e da qual famelicamente a sociedade sobrevive. O desejo é insaciável, nutre-se de seu desejo mesmo e, em sua infinitude, caminha em direção do amanhã. A necessidade moderna (líquida, como comenta Bauman) compra a felicidade e, todos aqueles que não podem comprá-la são excluídos da “vida” encapsulada em shoppings, estampando mercadorias em suas vitrines, sempre promessas de mais vida. Os shoppings são as praças pós-modernas (por lá circulamos, namoramos, olhamos…) com apenas uma diferença – lá não há mendigos. Eles são barrados quando, numa primeira e derradeira tentativa, tentam adentrar ao templo do consumo.

Em uma entrevista realizada com Jean-Luc Nancy, publicada com o título Entre poder e fé, o filósofo indaga sobre qual é o lugar público do amor e do desejo. Ou, dito de outra forma, “qual é o lugar de um desejo (do) público?”. Por de trás desta questão, retomamos a pergunta perturbadora sobre nossa real capacidade de estarmos juntos e por que devemos estar. Podemos pensar o público como o lugar deste exercício que, queiramos ou não, nos exige estarmos juntos, seja sentados ao lado de alguém no banco do ônibus, caminharmos na rua, estarmos na escola, ou no trabalho e em tantos outros espaços. Porém, estar lado a lado não nos coloca necessariamente na condição de estarmos juntos. O espaço público é o lugar que nos põe além desta mera condição, nos coloca o desafio grandioso de estarmos em coletivo, do contrário transformamos o espaço público em espaço privado.

É dessa forma que quero pensar o sentido de um movimento que tomou conta das universidades públicas neste país: o movimento das Ocupações nas Universidades. As ocupações deram uma nova cara aos movimentos sociais resgatando o sentido profundo do espaço público. Através de pautas em defesa da Educação, da Saúde, pelo fim da mordaça nas escolas e, impreterivelmente, pela defesa da democracia, as Ocupações ocuparam o espaço vazio das ruas, da boca, do corpo cansado, da vida exausta. As ocupações construíram espaços de desejo, nos ensinaram que podemos fazer política com poesia, autogestão, com amorosidade. E para responder a Jean-Luc Nancy, poderíamos dizer que o espaço do desejo (do) público é sempre o espaço que nos faz criar, inventar formas de resistência. As ocupações nos mostraram a desejar o público e, ao mesmo tempo, transformá-lo em um espaço de desejos. E aí percebemos que somente se ocupa o espaço público quando este deixa de sê-lo, pois espaço público é, por definição, já ocupado por todos.

Magali Mendes de Menezes é professora da UFRGS

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