As ocupações construíram espaços de desejo, nos ensinaram que podemos fazer política com poesia, autogestão, com amorosidade
Divisor, Lygia Pape (Foto: Reprodução)
Dedico este texto aos estudantes das ocupações das universidades
deste Brasil, em especial, aos estudantes da Faculdade de Educação da
UFRGS
Em tempos de dureza profunda em todas as dimensões do que chamamos
humano, parece que perdemos a capacidade de desejar, de amar. Por vezes
piegas em demasia, por outras, restrito ao espaço privado, o amor
desejante, aquele que não mata, mas potencializa a vida – precisa
recuperar suas forças. Nietzsche em sua obra Gaia ciência
pergunta: o que é viver? E diz: “Viver – é continuamente afastar de si
algo que quer morrer”. Esta é ambiguidade de quem deseja a vida, afastar
continuamente a morte, mesmo que seja presente. E nesta relação de
ausência-presença, por ora morremos, por ora vivemos. Contudo, a vida
nasce assim em seu desejo mesmo de continuar vivendo. Vida e desejo se
conjugam. Em uma sociedade onde os desejos são fabricados, a vida nos
escapa e com ela qualquer possibilidade de sonhar, pois o desejo nos
movimenta, nos desloca para o porvir, sempre incerto – mas que encanta
porque é anúncio e esperança de mais vida. O desejo fabricado
confunde-se com a necessidade criada, aquela que se alimenta da
saciedade e da qual famelicamente a sociedade sobrevive. O desejo é
insaciável, nutre-se de seu desejo mesmo e, em sua infinitude, caminha
em direção do amanhã. A necessidade moderna (líquida, como comenta
Bauman) compra a felicidade e, todos aqueles que não podem comprá-la são
excluídos da “vida” encapsulada em shoppings, estampando mercadorias em
suas vitrines, sempre promessas de mais vida. Os shoppings são as
praças pós-modernas (por lá circulamos, namoramos, olhamos…) com apenas
uma diferença – lá não há mendigos. Eles são barrados quando, numa
primeira e derradeira tentativa, tentam adentrar ao templo do consumo.
Em uma entrevista realizada com Jean-Luc Nancy, publicada com o título Entre poder e fé,
o filósofo indaga sobre qual é o lugar público do amor e do desejo. Ou,
dito de outra forma, “qual é o lugar de um desejo (do) público?”. Por
de trás desta questão, retomamos a pergunta perturbadora sobre nossa
real capacidade de estarmos juntos e por que devemos estar. Podemos
pensar o público como o lugar deste exercício que, queiramos ou não, nos
exige estarmos juntos, seja sentados ao lado de alguém no banco do
ônibus, caminharmos na rua, estarmos na escola, ou no trabalho e em
tantos outros espaços. Porém, estar lado a lado não nos coloca
necessariamente na condição de estarmos juntos. O espaço público é o
lugar que nos põe além desta mera condição, nos coloca o desafio
grandioso de estarmos em coletivo, do contrário transformamos o espaço
público em espaço privado.
É dessa forma que quero pensar o sentido de um movimento que tomou
conta das universidades públicas neste país: o movimento das Ocupações
nas Universidades. As ocupações deram uma nova cara aos movimentos
sociais resgatando o sentido profundo do espaço público. Através de
pautas em defesa da Educação, da Saúde, pelo fim da mordaça nas escolas
e, impreterivelmente, pela defesa da democracia, as Ocupações ocuparam o
espaço vazio das ruas, da boca, do corpo cansado, da vida exausta. As
ocupações construíram espaços de desejo, nos ensinaram que podemos fazer
política com poesia, autogestão, com amorosidade. E para responder a
Jean-Luc Nancy, poderíamos dizer que o espaço do desejo (do) público é
sempre o espaço que nos faz criar, inventar formas de resistência. As
ocupações nos mostraram a desejar o público e, ao mesmo tempo,
transformá-lo em um espaço de desejos. E aí percebemos que somente se
ocupa o espaço público quando este deixa de sê-lo, pois espaço público
é, por definição, já ocupado por todos.
Magali Mendes de Menezes é professora da UFRGS
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