quarta-feira, 18 de maio de 2016

A arte de improvisar histórias

(ilustração: Julie Paschkis)
 
Um velho clichê diz que violão é o instrumento mais fácil de tocar e mais difícil de tocar bem. (Violão porque é o que eu toco; imagino que qualquer músico já ouviu dizer isso a respeito do seu instrumento.) Eu diria que inventar histórias de improviso é a coisa mais fácil de fazer e a mais difícil de fazer bem. Em rodas de conversa com amigos já pratiquei a nobre arte de começar uma história meio sem pé nem cabeça, depois de dois minutos dizer para o cara ao lado: “Agora vai tu”, e cada um ir adicionando seu trecho e passando adiante.

(Digressão: esse sistema é o que em inglês chamam de “round robin”, uma criação coletiva com cada autor pegando a história onde o outro larga. Existe na FC e no romance policial, por escrito, não improvisado. Os surrealistas franceses gostavam de improvisar histórias, poemas ou narrativas de sonhos em voz alta. Um dos meus contos preferidos de Conan Doyle é “Cipriano Overbeck Wells, mosaico literário”, onde numa alucinação meio machadiana o narrador vê-se cercado de autores como Jonathan Swift, Bulwer-Lytton, Walter Scott, Daniel Defoe e outros, improvisando em “round robin” uma história para ele.)

Fazer de improviso é mais difícil se o cara for se preocupar com aspectos que já são complicados no texto escrito: coerência do enredo, originalidade da idéia, riqueza de descrições, profundidade psicológica... Não, uma história inventada em voz alta deve ir se jogando para a frente sem saber o que vem depois, e a imagem que me vem à cabeça é um macaco saltando de galho em galho, largando-se de um galho forte que se enverga e o arremessa como uma catapulta bem no meio da copa de outra árvore onde por certo não faltará com o quê se pegar. Assim vai o narrador de improviso.

Já improvisei muita historinha para meus filhos na hora de dormir, a única regra era que não podia ficar bolando sinopse meia hora antes. Eu só me permitia pensar na história depois de pronunciada a fórmula mágica do Era uma vez. Depois disso eu olhava em torno, via a janela aberta e dizia: “Um dia, o Macaco vinha andando pela floresta de noite e viu de longe uma janela acesa, num lugar onde ele nunca tinha visto casa nenhuma”. O que vem depois não sei, mas qualquer coisa pode se encaixar aí.

Escrever assim (porque isso faz parte de escrever) requer certas precauções. Me lembro muito das histórias que Tia Adiza contava para a gente, mais de meio século atrás, nesse mesmo ritual de botar pra dormir. Ela vinha com umas histórias bem concatenadas, que eu acho que eram menos improvisadas do que exumadas da memória. E de vez em quando aparecia algo como:

“Aí o Rei mandou prender o rapaz no calabouço, os guardas jogaram ele no porão, fecharam o alçapão lá no alto e botaram uma pedra em cima. O rapaz ficou preso. Mas certa hora ele ouviu um barulho na grade.” “Que grade, tia?”  “Oi, não falei na grade não? Num canto do porão tinha uma portinha baixa, gradeada, que dava pro lado de fora!”

Elementos narrativos brotavam assim, do-nada, de acordo com as conveniências do herói, e dela. Eu já ficava com medo de imaginar a cena, porque podia haver uma porção de elementos deus ex machina que ela estava vendo e eu não. “Aí o rapaz ia caminhando pelo descampado, aí se deitou pra descansar. Foi quando ele ouviu um tropel, lá vinha um touro furioso, imenso, correndo pra cima dele?”  “Eita, tia, e o que foi que o rapaz fez?” “Ele subiu correndo na árvore! Oi, não falei na árvore não? Era uma mangueira bem alta...”

Quem está inventando em voz alta precisa dessa cara de pau. Quem escreve, não. Quando ele perceber que faltou informação prévia ao leitor (que não aceita ouvir falar pela primeira vez em algo quando nesse algo repousa todo o peso de uma cena), ele pode voltar atrás quanto espaço for necessário para “plantar” a informação sobre a gradezinha ou a mangueira. De preferência, dando-lhe um contexto que não sugira de que maneira será utilizada a seguir.

Se o fluxo principal da história for atraente, o ouvinte perdoa muita coisa, perdoa que a moça seja loura numa cena e morena na outra, como as mulheres fatais de Buñuel, perdoa que um táxi ou uma carruagem que o herói deixou esperando por ele estejam à sua espera até hoje após o fim do livro, perdoa que o herói tente alcançar seus objetivos da maneira mais tortuosa quando com duas manobras poderia resolver tudo. O ouvinte-leitor sabe e sente que, se fosse assim, não haveria história. Ele aceita as maiores inverossimilhanças, desde que estas tornem a história mais vívida, e não menos. Os melhores filmes de Hitchcock se baseiam nesse tobogã narrativo onde cenas implausíveis se sucedem da maneira mais emocionalmente plausível que se possa imaginar.
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo

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