Era uma vez uma pipa.
O menino que a fez estava alegre e
imaginou que a pipa também estaria. Por isso fez nela uma cara risonha,
colando tiras de papel de seda vermelho: dois olhos, um nariz, uma
boca...
Ô pipa boa: levinha, travessa, subia alto...
Gostava de brincar com o perigo, vivia zombando dos fios e dos galhos das árvores.
- “Vocês não me pegam, vocês não me pegam...”
E enquanto ria sacudia o rabo em desafio.
Chegou até a rasgar o papel, num galho que foi mais rápido, mas o menino consertou, colando um remendo da mesma cor.
Mas aconteceu que num dia, ela estava
começando a subir, correndo de um lado para o outro no vento, olhou para
baixo e viu, lá num quintal, uma flor. Ela já havia visto muitas
flores. Só que desta vez os seus olhos e os olhos da flor se
encontraram, e ela sentiu uma coisa estranha. Não, não era a beleza da
flor. Já vira outras, mais belas. Eram os olhos...
Quem não entende pensa que todos os
olhos são parecidos, só diferentes na cor. Mas não é assim. Há olhos que
agradam, acariciam a gente como se fossem mãos. Outros dão medo,
ameaçam, acusam, quando a gente se percebe encarados por eles, dá um
arrepio ruim elo corpo. Tem também os olhos que colam, hipnotizam,
enfeitiçam...
Ah! Você não sabe o que é enfeitiçar?!
Enfeitiçar é virar a gente pelo avesso:
as coisas boas ficam escondidas, não têm permissão para aparecer; e as
coisas ruins começam a sair. Todo mundo é uma mistura de coisas boas e
ruins; às vezes a gente está sorrindo, às vezes a gente está de cara
feia. Mas o enfeitiçado fica sendo uma coisa só...
Pois é, o enfeitiçado não pode mais fazer o que ele quer, fica esquecido de quem ele era...
A pipa ficou enfeitiçada. Não mais
queria ser pipa. Só queria ser uma coisa: fazer o que a florzinha
quisesse. Ah! Ela era tão maravilhosa! Que felicidade se pudesse ficar
de mãos dadas com ela, pelo resto dos seus dias...
E assim, resolver mudar de dono.
Aproveitando-se de um vento forte, deu um puxão repentino na linha, ela
arrebentou e a pipa foi cair, devagarzinho, ao lado da flor.
E deu a sua linha para ela segurar. Ela segurou forte.
Agora, sua linha nas mãos da flor, a
pipa pensou que voar seria muito mais gostoso. Lá de cima conversaria
com ela, e ao voltar lhe contaria estórias para que ela dormisse. E ela
pediu:
- “Florzinha, me solta...” E a florzinha soltou.
A pipa subiu bem alto e seu coração bateu feliz. Quando se está lá no alto é bom saber que há alguém esperando, lá embaixo.
Mas a flor, aqui de baixo, percebeu que
estava ficando triste. Não, não é que estivesse triste. Estava ficando
com raiva. Que injustiça que a pipa pudesse voar tão alto, e ela tivesse
de ficar plantada no não. E teve inveja da pipa.
Tinha raiva ao ver a felicidade da pipa,
longe dela... Tinha raiva quando via as pipas lá em cima, tagarelando
entre si. E ela flor, sozinha, deixada de fora.
- “Se a pipa me amasse de verdade não poderia estar feliz lá em cima, longe de mim. Ficaria o tempo todo aqui comigo...”
E à inveja juntou-se o ciúme.
Inveja é ficar infeliz vendo as coisas
bonitas e boas que os outros têm, e nós não. Ciúme é a dor que dá quando
a gente imagina a felicidade do outro, sem que a gente esteja com ele.
E a flor começou a ficar malvada. Ficava
emburrada quando a pipa chegava. Exigia explicações de tudo. E a pipa
começou a ter medo de ficar feliz, pois sabia que isto faria a flor
sofrer.
E a flor aos poucos foi encurtando a linha. A pipa não podia mais voar.
Via ali do baixinho, de sobre o quintal
(esta essa toda a distância que a flor lhe permitia voar) as pipas lá em
cima... E sua boca foi ficando triste. E percebeu que já não gostava
tanto da flor, como no início...
Essa história não terminou. Está
acontecendo bem agora, em algum lugar... E há três jeitos de escrever o
seu fim. Você é que vai escolher.
Primeiro: A pipa ficou tão triste que resolveu nunca mais voar.
- “Não vou te incomodar com os meus risos, Flor, mas também não vou te dar a alegria do meu sorriso”.
E assim ficou amarrada junto à flor, mas mais longe dela do que nunca, porque o seu coração estava em sonhos de vôos e nos risos de outros tempos.
Segundo: A flor, na verdade, era uma
borboleta que uma bruxa má havia enfeitiçado e condenado a ficar fincada
no chão. O feitiço só se quebraria no dia em que ela fosse capaz de
dizer não à sua inveja e ao seu ciúme, e se sentisse feliz com a
felicidade dos outros. E aconteceu que um dia, vendo a pipa voar, ela se
esqueceu de si mesma por um instante e ficou feliz ao ver a felicidade
da pipa. Quando isso aconteceu, o feitiço se quebrou, e ela voou, agora
como borboleta, para o alto, e os dois, pipa e borboleta, puderam
brincar juntos...
Terceiro: a pipa percebeu que havia mais
alegria na liberdade de antigamente que nos abraços da flor. Porque
aqueles eram abraços que amarravam. E assim, num dia de grande ventania,
e se valendo de uma distração da flor, arrebentou a linha, e foi em
busca de uma outra mão que ficasse feliz vendo-a voar nas alturas.
Rubem Alves

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