domingo, 24 de janeiro de 2016

Metamorfoses

Quem acredita em reencarnação e pesquisa suas vidas passadas geralmente descobre que foi, se não um herói homérico, nunca menos do que um faraó, rainha ou artista famoso
No seu livro “Fantastic Metamorphoses, Other Worlds”, a inglesa Marina Warner lembra que Platão encerra a sua “República” com a descrição que Sócrates faz dos heróis de Homero escolhendo suas vidas futuras, ou os seres que suas almas habitarão depois da morte. Orfeu escolhe voltar como um cisne; Ajax, um leão; Agamenon, uma águia.

Muitos preferem reencarnações de acordo com o seu passado. O corredor Atalanta quer voltar como atleta. O construtor do Cavalo de Troia quer ser uma artesã, com o mesmo ofício, mas outro sexo. Um bufão escolhe voltar como macaco. Etc.

Mas Ulisses, herói maior da Odisseia, prefere voltar como um homem comum. A alma de Odisseus escolhe o ser que os outros desprezaram para ocupar em sua outra vida. Um bicho simples, um anti-Ulisses que nenhuma aventura tirará de casa.

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Quem acredita em reencarnação e pesquisa sobre suas vidas passadas geralmente descobre que foi, se não um herói homérico, nunca menos do que um faraó, uma rainha ou um artista famoso. Ninguém admite ter sido um piolho ou uma faxineira em Versalhes. E todos têm um consolo para a sua atual condição: ela não passa de uma etapa, uma transição entre um grande personagem e outro, fazendo estágio como apenas ele.

O mito socrático introduz a ideia de que se pode escolher nossa próxima vida (primeirão massagista de miss) mas o que fascina é a opção de Ulisses pela mediocridade reconfortadora, pela pacatez como um refúgio.

Ulisses não quer ser mais ninguém, quer ficar a salvo da vida e da História. Ao contrário de quem não se conforma de não ter sido alguma coisa mais do que é em algum lugar do passado, ele opta por não ser nem Ulisses nem coisa parecida, no futuro.

O livro de Marina Warner é sobre transformações a partir do poema “Metamorfoses”, de Ovídio. Transformação como recurso literário, presente em todo tipo de narrativa desde os primeiros mitos até o realismo fantástico, e transformação como mágica e mistério, na outra história da humanidade que coexiste com a história racional, ou em outras feitiçarias além das judaico-cristãs.

O trecho que cita Ulisses é uma digressão sobre a transmigração das almas, a metamorfose final, mas gostei da ideia do nosso herói pedindo apenas descanso para a sua. Afinal, toda a “Odisseia” não passa da história de alguém não querendo outra coisa a não ser voltar para os braços da patroa. 

Luis Fernando Veríssimo
Do blog do Noblat

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