quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Ninguém lembra mais de Maria, a menina da seca

Hoje quase ninguém lembra da menina Maria, aquela que a seca levou para junto de Deus. Tinha apenas seis anos e era um anjo.

Foi na seca, uma seca terrível.

Maria vivia na zona rural de Santa Luzia, numa terra verde, cheia de rios, de açudes, de pássaros, de bichos, de muita fartura e muita alegria. Os campos de Maria eram enfeitados de pendões de milho, pendões que cresciam na direção do céu agradecendo as chuvas que de lá caiam para espalhar alegria entre os agricultores e filhos de agricultores, que cultivavam a terra e dela tiravam a seiva da vida, o sustento do corpo.

Os amiguinhos de Maria juntavam-se a ela nas brincadeiras de criança. Corriam pelos caminhos estreitos de terra batida, banhavam-se nos córregos, riachos e açudes, voavam com as borboletas coloridas por sobre os matos em flor e sonhavam com a fada madrinha que um dia as levariam ao mundo encantado das estórias de trancoso, aquelas estórias que entravam pela perna de pinto, saiam pela de pato, e o senhor rei mandava que contassem vinte e quatro.

Até que veio a seca.

No princípio quase não foi notada. Ela chegou de mansinho, traiçoeira, silenciosa, igual a cobra venenosa que não perde o bote, nem a presa. Pouco a pouco se apoderou de tudo, do chão, do ar, das matas e dos açudes. O mato perdeu o verde, os açudes ficaram sem água, o ar quente esturricou e asfixiou os pulmões. A vida se foi.

Onde antes havia água em abundância, havia agora lama seca, rachada. Os peixes em pouco tempo morreram e secaram. Os animais, sem água e sem pasto, foram morrendo um atrás do outro. As mulheres se tornaram viúvas de maridos vivos. Os maridos partiram como retirantes para outras terras, buscando sobrevivência, deixando no seu rastro o lar de antigamente, os seus amores e os seus sonhos.

As estradas se encheram de nômades em procissão. Quem tinha força, caminhava fugindo, os de pouca força morriam no caminho. As estradas encheram-se de cruzes que marcavam os locais onde eles morreram de fome e de sede.

A mãe de Maria foi alistada na frente de emergência do Governo. Todo dia de manhã levantava-se pela madrugada, improvisava alguma coisa para Maria comer, deixava-a dormindo, saía de casa e ia trabalhar. Maria ficava só, o dia todo, olhando as telhas, puxando conversa com a solidão.

Um dia a mãe de Maria foi para a frente de emergência e,quando Maria acordou, sentiu saudades dela. Levantou-se e saiu pela caatinga em busca da mãe. Andou, andou, subiu ladeiras, caminhou pelas areias quentes dos riachos secos, pisou com seus pezinhos descalços as pedras quentes dos lagedos esturricados, mas nada de encontrar a mãe. O céu ficou cinzento, o sol inclemente botou seus raios para fora, a pele de Maria começou a queimar, a pedir água. Maria cansou, sentou-se num canto de cerca buscando descanso, fechou seus olhinhos e viu aquela fada madrinha dos seus sonhos infantis chegar, pegá-la no colo e levá-la para o mundo faz de conta das estórias de trancoso.

Três dias depois a mãe de Maria, com a ajuda de vizinhos, a encontrou no canto de cerca, sentada, braços cruzados sobre o peito, olhinhos fechados, cabelos em desalinho. No seu rosto branco como a neve não havia, porém, sinais de sofrimento. Ao contrário, Maria tinha nos lábios o sorriso de quem se encantou deste mundo, trocando-o por outro onde as crianças não sofrem e escutam estórias de fadas.


Tião Lucena

Um comentário:

Jairo Alves disse...

E "Ninguém lembra mais de Maria"...

Maria, "A menina da seca",
que um dia viu o verde,
que no outro dia fugiu
e a fez morrer de sede

Marias...quantas existem
mais além, com tanta fome;
Caminham e persistem
Mas no teu dia, some...

Maria Solidão, de pé no chão,
Maria Triste, de vida negada,
Maria das Dores, no coração,
Maria do Mundo, abandonada...

Tantas Marias que se ergue,
Neste Sertão de coisa preta,
Tanto que caminha, se perde
E batizam, "A menina da seca"...


20 de setembro de 2012