quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O batizado

Janeiro de 1959. Fidel Castro lidera um grupo de guerrilheiros, acompanhado de seu companheiro de aventuras, o argentino Ernesto Che Guevara, chega ao poder em Cuba depois de impor uma humilhante derrota ao regime do ditador Fulgêncio Batista, que tinha uma quedinha pela política imperialista norte-americana. Não demorou muito e as relações entre o novo regime cubano e o governo de Washington começaram a ruir. A revolução encabeçada por Fidel Castro não se contentava apenas em reformar a estrutura política do país, mas pretendia realizar uma profunda transformação social, que implicava afetar os históricos interesses norte-americanos investidos na ilha.

No ano seguinte, mais precisamente em outubro de 1960, o jovem John Fitzgerald Kennedy, recém eleito presidente americano, percebendo a tentação que o regime de Fidel poderia representar para a América Latina empobrecida e sem esperanças, tomou a iniciativa de lançar as bases da Aliança para o Progresso, algo assim como um “bactericida ideológico”, destinado a proteger o corpo político latino-americano afastando o germe revolucionário do Continente.

No papel, o projeto do jovem presidente definia linhas de atuação política, social e econômica. Na parte que nos interessa, a social, a Aliança chegou aqui no Brasil em meados de 1962, mais precisamente, ao interior da Paraíba, no sítio Santa Maria, município de Pombal.

Lá morava “seu Severino Cipó”, pobre agricultor, 53 anos, pai de sete filhos, casado com a sofrida e incansável Zefinha do Arraiá, 45 anos de muito caminhar, que andava pra cima e pra baixo, bucho na boca, dois meninos catarrentos atochados na barra de sua saia, e os outros cinco em fila indiana logo atrás garimpando pelas vizinhanças algum mangai pra comer.

Passava das três da tarde, o sol estava rachando, a tapera muito baixa, muito tosca, paredes de taipa, cobertura de palha; parecia tudo, menos uma casa ou um lar. Deitado no chão da sala estava o bravo Severino Cipó; esperava o sol esfriar um pouco, pra ir ao roçado buscar as duas cabras que lá “passavam em branco” durante todo o dia.

De repente, o estalido de palmas soou na pequena sala:

­­­­- Good Afternoon Mister.

Seu Severino Cipó deu um salto pra frente assustado, meio desorientado, e depara-se com uma visagem, um homenzarrão de quase dois metros, bem vestido, vermelho que só pimenta dedo de moça, mais suado do que bico de chaleira, parado à sua frente tentando se ajeitar no meio da porta estreita.

- Pois não, seu Zé, o que deseja?

- My name is Gregory…

Sem entender absolutamente nada do que aquele homem pronunciava, antes que ele concluísse sua fala, seu Severino Cipó o interrompe dizendo:

- Naum, num quero naum. Nóis samo devoto de meu Padim Pade Ciço, num vamo passar pra leis dos crente naum.

O homem à porta apressou-se ainda mais e quase em um som gutural soltou:

- I’m sorry. Desculpe, desculpe, meu nome é Gregory, sou funcionário do Governo Americano, estou aqui para ajudar você e sua família.

Rapidamente seu Severino Cipó desarma-se ao ouvir a palavra que esperou a vida inteira: “ajuda” e logo convida o americano a entrar e se acomodar, dizendo:

- Se aproxegue seu Grego, eu sou Severino Cipó, seu criado. Senta aí nesse tamburetim, só num sei se ele agüenta lhe apará. Mais me diga, o que é que o sinhô faz aqui pro essas banda de fim de mundo, pedaço esquecido por todo mundo, mas naum por Deus?

O americano, enviado pela embaixada americana em Brasília, encarregava-se de fazer levantamentos sobre as necessidades das comunidades do interior paraibano, além é claro, de estudar especialmente, os aspectos políticos da região, a capacidade de organização da população, o nível de consciência política etc. Dirigindo-se ofegante ao seu Severino Cipó, o americano diz:

- Nós viemos aqui para ajudar toda essa comunidade; nossa missão é aproximar nossas nações, estamos começando com a distribuição de alimentos de primeira necessidade, roupas e remédios e estaremos também realizando algumas palestras para todos vocês.

Seu Severino Cipó, olhando meio desconfiado para o gringo, como quem surpreso com tanta bondade vai logo disparando:

- Ói moço, nóis num temo nada pra dá em troca disso tudo não; nóis aqui véve tudo feito morto-vivo, perambulando aí pêras caatinga, pru mode arrumar o que cumê. Agora uma coisa nóis tem muito aqui, é corage de trabaiá, isso aí meu fí, nunca fartou naum...

Nesse instante o americano observa atentamente o interior daquela simples morada, como quem não estava acreditando que alguém pudesse viver em tal situação. Apressou-se em esclarecer melhor os motivos de sua visita:

- Nossa intenção é ajudar o senhor e sua família. Não queremos receber nada em troca, absolutamente. Espere um instante enquanto pego algumas coisas no meu carro.

Gregory levantou-se e foi até sua Land Rover estacionada ao lado da tapera de seu Severino Cipó, retirando da mala uma grande mochila azul marinho, com a bandeira americana bordada no seu fecho frontal. Parecia pesada, sinalizando que ali muito ele trazia. Com esforço colocou-a no meio da saleta, onde a essa altura já estava uma platéia reunida e além de seu Severino Cipó, agora estavam ali com os olhos arregalados, num misto de curiosidade e fome, Dona Zefinha e seus sete filhos, para espanto do americano Gregory, que não se contendo falou:

- Nossa! Que prole grande o senhor tem seu Severino. Acho que aqui teremos novidades para todos. Vejam só, eis aqui uma cesta contendo gêneros alimentícios de primeira necessidade, além dessas roupas gentilmente cedidas pelos cidadãos norte-americanos que contribuem com nossa campanha. E tem mais, vejo que a senhora está esperando mais um bebê, e por isso vou providenciar imediatamente um enxoval para a criança.

Nessa hora, os meninos já faziam a festa com todas aquelas novidades espalhadas no meio da sala. Seu Severino Cipó estava pálido, congelado, não sabia o que dizer. Dona Zefinha, ainda um pouco desconfiada, colocava as mãos na cintura denunciando o peso da enorme barriga de sete meses. Chamou Seu Severino num cantinho da sala e reclamou:

- Severino, o que é isso homi ? Que danado de tanto brinde é esse? Esse branquelo aí vai querê levar os minino, será que ele é tal do papafigo?

Severino Cipó, ainda inebriado com tanta gentileza vinda de um estranho, tratou logo de repreender sua desconfiada Zefinha:

- Dexe de bestage mulé, num tá veno que esse homi aí é um santo, naum? Pelas caridade, vamos agradecer o que ele tá fazeno por nóis.

Puxando Zefinha pelo braço, Seu Severino Cipó tratou de demonstrar satisfação com aquele inesperado acontecimento, e começou com uma melosa ladainha de agradecimento ao americano Gregory:

- Que nosso sinhô Jesus Cristo seja lovado, que meu Padim Ciço Rumão do Juazero possa lhe guiar pro resto de sua vida, que ai de sê longa. Meu amigo, tanta bondade assim num cristão só pode sê coisa de Deus, coisa enviada do céu, o sinhô é um anjo. Espia Zefinha ele num parece um anjo mêrmo? branco, ispichado, parrudo e cum essa bondade toda, só pode sê um anjo.

O Gregory ruborizado com aqueles elogios todos ponderou:

- Longe disso seu Severino, sou apenas um funcionário do governo americano que está aqui cumprindo sua função, em nome do Projeto Aliança para o Progresso.

Seu Severino:

- Sei, sei, aliança para o pogresso, pois bem, acho que cum isso tudo nóis vai é pogredi mermo. O sinhô aceita um cafezim?

Seu Severino já inaugura a sacola de presentes, estendendo a mão e agarrando um pacote de café, havia meses que não sabia o que era tomar um gole daquela apreciada bebida:

- Zefinha, faça ali minha fia um cafezim pra nóis.

Depois de muita insistência, Gregory aceitou tomar o café, que foi acompanhado de uma boa prosa, muitas perguntas, repostas nem sempre entendidas, mas, ao longo dos trinta minutos que se seguiram os ocupantes daquela saleta estavam se entendendo muito bem. Até Dona Zefinha já se permitia olhar diretamente para o americano sem nenhum constrangimento.

O americano ficava encantado com as histórias do casal, de como foi o nascimento de cada um dos sete filhos, das dificuldades, das alegrias, da falta de chuvas, das primeiras letras que Dona Zefinha rabiscou. Eis que num dado momento, Gregory começa a falar empolgadamente sobre o Presidente John Fitzgerald Kennedy, de como ele era um homem bom, de sua bela esposa, de suas idéias para a América Latina, de seu fervor católico (Kennedy foi o primeiro presidente católico dos EUA).

Toda essa prosa deixou o casal Cipó encantado com a figura do presidente americano, na imaginação deles, aquele homem parecia não existir de tão perfeito que era, lembravam-se das estórias antigas sobre um bondoso rei português (Dom Sebastião-1554-1578- derrotado e desaparecido na histórica batalha de Alcácer-Quibir).

Ainda hoje são marcantes nas vastas manifestações do folclore brasileiro a figura do rei bom e salvador, de tudo provedor, tão mitológico quanto fantasioso, D. Sebastião.

Ao final daquela agradável conversa, Gregory se despediu prometendo voltar no mês seguinte, quando traria o enxoval do pequeno Cipó que nasceria dentro de dois meses. Dona Zefinha ficou encantada com tanta gentileza, enquanto o carro se afastava de sua morada ela perdia o olhar no tubo de poeira formado pela potente Land Rover azul marinho dirigida pelo americano Gregory.

As visitas da equipe do projeto Aliança para o Progresso tornaram-se freqüentes, o americano Gregory já se sentia em casa, conseguiu até decorar os nomes dos sete filhos de seu Severino, e já andava dando palpite sobre o nome do pequeno cipó que acabara de nascer, agora com um mês de vida.

- Seu Severino, o senhor já escolheu um nome para o seu bebê?

Seu Severino Cipó:

- Inda naum Gregor, estou na dúvida, num sei se boto Zé ou Zezim.

Gregory:

- Há sei, sei, o senhor quer um nome simples, fácil de se pronunciar não é? Mas acho que vai ficar um pouco confuso, pois o senhor já tem um José de Arimatéia, um Josué, um Joquinha, um Jessé, um Jeremias, um Jordão, um Joaquim.

Dona Zefinha ouvindo aquele papo amistoso saltou de lá tomando a frente da conversa disparou:

- Dessa veiz quem vai iscuiê o nomi do minino sou eu, e tem mais, passei a noite sonhando com isso e o nome dele vai sê Juão Quenedi Cipó, quero fazê uma omenage ao prisidente dos istados unido. Será que ele aceita Gregor? É de todo coração, quiria muito que ele se chamasse assim, será que si nóis pidi a ele a pirmissão, ele concede essa graça?

O Gregory rindo satisfeito com aquela tirada de Dona Zefinha balançou a cabeça confirmando o pedido.

- Claro que aceita, para agilizar essa idéia da senhora, amanhã mesmo passarei um telegrama para a embaixada em Brasília, pedirei que façam contato com a Casa Branca dando notícia dessa bela homenagem que nosso Presidente está recebendo aqui no Brasil.

Dona Zefinha balançando seu bebê no colo enquanto ele se lambuzava em uma apetitosa mamada, completou:

- Ô Gregor, tem mais uma coisa: eu sonhei que seu prisidente era o padim do nosso fiotim, será que ele aceitaria sê o padim?

Gregory dessa vez fez uma cara mais séria e após pensar uns segundos, respondeu:

- Claro Dona Zefinha, será uma justíssima homenagem, vou tentar amanhã mesmo um contato com Brasília, tenho certeza que será uma honra para o presidente ser o padrinho do seu filho, ainda mais, contando com a homenagem que a senhora quer fazer.

Em menos de um mês tudo já estava arranjado. Por expressa delegação do próprio JFK, o funcionário Gregory o representaria por procuração expressa no batizado do pequeno João Quenedi Cipó. Foi uma alegria só quando Dona Zefinha recebeu a Carta escrita em português, assinada pelo próprio John Kennedy dizendo da honra que tinha em ser escolhido para ser padrinho de uma criança, no sofrido nordeste brasileiro e que ainda levava seu nome, ou pelo menos parte dele.

E assim aconteceu. Em 10 de janeiro de 1962, na paróquia de Pombal, alto sertão paraibano, foi realizado o batizado de João Quenedi Cipó, oitavo filho da dinastia Cipó. Era o motivo das fofocas do lugar, um afilhado do presidente americano morava no sítio Santa Maria, agora numa casinha melhor, todo mundo alimentado, umas cabrinhas no curral, velocípede pros meninos, roupa nova, panela cheia, banheirinho com fossa séptica lá nos fundos da casa, radinho de pilha para seu Severino Cipó ouvir o noticiário e Dona Zefinha, as novelas.

Um ano se passou e quando tudo parecia bem, aquele que representava o presente mais alegre da casa, se encarregaria de trazer a notícia mais triste que a família Cipó poderia receber, em uma chamada de plantão, sai a seguinte notícia:

- “O plantão de notícias informa: nesta sexta-feira, dia 22 de novembro de 1963, aconteceu um trágico incidente, durante uma visita à cidade texana de Dallas, o Presidente americano John Fitzgerald Kennedy foi atingido fatalmente por duas balas, uma na garganta e outra na cabeça, ferimentos que o levaram a óbito”.

Essa notícia caiu com uma bomba naquela humilde residência nordestina, foi uma gritaria só, o desespero tomou conta de todos. Seu Severino coçava a cabeça e se perguntava como era que uma tragédia daquela tinha acontecido, Dona Zefinha era o retrato de desespero, corria agarrada com a barra da saia pra lá e pra cá. Os meninos todos chorando pelos cantos da casa, parecia que o mundo estava acabando.

Curiosamente, naquele momento dois mundos distintos estavam intimamente ligados pela dor. Era como se aquela vida nababesca dos ocupantes da Casa Branca se fundisse misteriosamente com a simplicidade e pobreza da família Cipó.

À medida que a hora avançava, aumentava ainda mais a tristeza de seu Severino e Dona Zefinha, pregados no rádio aguardavam mais alguma notícia. O clima fúnebre ocupava todos os cantos da casa, velas foram acesas, os terços enroscados nas mãos, Dona Zefinha em um silêncio sepulcral, apenas chorava e balançava o corpo para frente e para trás, como quem se prostrava em um pesaroso estado de lamentação.

E assim, seguiu-se noite à dentro, todo o dia seguinte. Na manhã do terceiro dia, seu Severino Cipó resolve romper com as “homenagens fúnebres”. Guardou o terço, lavou o rosto, colocou comida para meninos e pôs-se a observar Dona Zefinha que continuava impávida e firme em seu processo de aceitação interna daquela tragédia.

- Zefinha, vem cumê muié desse jeito ocê morre tumém. Chega muié, a quaiada vai azedá.

Era como se Dona Zefinha nada ouvisse, ela mergulhara num profundo estado de catalepsia, não ouvia, não falava, não se mexia. Aquela situação já estava preocupando seu Severino, foi quando ele teve idéia de chamar a vizinha, Dona Carminha, grande amiga de sua sofrida esposa.

- Espia mermo Dona Carminha, espia só o jeito de Zefinha, já falei cum ela, já fiz de tudo mais ela num sai desse canto de parede, o que vamo fazê?

Dona Carminha, uma sexagenária paraibana, educada na fé e na caridade, com a paciência de Jô tranqüilizou seu Severino Cipó:

- Calma omi, dexa que eu ajudo Zefinha, ela só tá passada com a morte do Padim de Juão Quenedi, isso é normal nessa situação.

Passava das cinco da tarde quando Dona Zefinha saiu de seu estado catatônico, ao perceber Dona Carminha sentada na sala ela desabou novamente, chorando copiosamente e aos prantos berrava:

- Ô Carminha, ô muié, como é que pode acontecer uma desgraça dessa? Me diga muié, como pode, ô Jesus, ô Jesus, me diga Senhô? Como pode meu Deus. Como pode meu Deus?

Dona Zefinha se apressava em consolar sua amiga:

- É isso mesmo minha amiga, quando Deus chama um homi tão bom como seu cumpadi, agente só tem é que aceitá. Mas, me diga muié, me diga o que ocê tá sintino? Faiz treis dia que ocê num comi nada, coma um poquim muié, coma.

E com o coração partido, com uma dor que não passava, Dona Zefinha finalmente desabafa:

- Ô muié eu só magino o cramô de cumade Jaqueline! ...

Muitos acusavam a Aliança para o Progresso de ser uma imoral tentativa do governo Kennedy de comprar as consciências latino-americanas que imobilizadas, não moveriam uma palha para ajudar a república irmã, Cuba. Já para outros tantos, em especial, para a família Cipó que estava a milhas e milhas desse entendimento político, viram no ambicioso projeto de JFK, que Deus na sua infinita misericórdia e bondade não esquece os pobres, os miseráveis, os esquecidos.


Dr.Tarciso Rômulo
Advogado pombalense
Atualmente trabalhando em Brasília.

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