domingo, 11 de março de 2018

O Brasil precisa descobrir Torquato Neto

Estreia o filme que revela como o grande poeta do Tropicalismo decifrou a melancolia de um país que se julga alegre.

Eu brasileiro, confesso, minha culpa meu pecado, meu sonho desesperado... Não bati panelas, que seja dito, porém pouco fiz para evitar a desgraceira, engoli, engolimos, goela abaixo, no máximo fui bolchevique de redes sociais, é pouco, muito pouco, pouco mesmo, piada, que fraqueza, meu rapaz.

A barra está pesada e a geleia geral brasileira, bicho, virou uma gororoba intragável de botar os bofes pra fora, como se diz no melhor português das nossas plagas. Tudo anda meio sem graça, os milicos voltaram a dar as caras com moral padrão meia-oito. Pense num fetiche da farda como salvação da ordem e do progresso, pense. Nunca fomos tão bocós e cívicos cornos conformados da brasilidade. Em bom nordestinês, estamos mais lascados do que maxixe em cruz. Uma gracilianíssima angústia a moer os ossos. De abrir o gás.

E sabe aquele seu melhor amigo de infância, lá da sua rua em Teresina, o Wellington? Rapaz, não te conto. Está por trás dessa ressaca toda. É um dos homens da tramoia que levou o Vampirão às cabeças. Sabia que você, amante dos filmes “B” de terror, iria curtir essa parada. A gente ri de nervoso, compreende?, isso alivia pra caramba. Ave. Calma que o drama nem começou deveras. Abrem-se as cortinas.

Wellington Moreira Franco. Ele mesmo. O que são os destinos na mão da mesma cigana. Você partiu para a Bahia, tropicalista sina, o gato angorá -apelido dado pelo Brizola- seguiu os rastros da bufunfa da política. Sejamos grato ao angorá pelo menos em uma coisa: o desalmado falou com carinho sobre você no filme. Memória delicada. Vade retro. Corta. Você e esse miserável na mesma rua e no mesmo gibi dos primeiros passos.

Ah, que filme fodidamente lindo os meninos fizeram sobre sua trajetória. Chorei. Que pancada. Seu filho Thiago Nunes... Psiu! Não vamos acordá-lo às três da madrugada. Choro e alento, juro que me aluí do canto. No conjunto da obra, o filme também me animou para a existência, vide quão paradoxal a essa altura. Não, não falarei sobre o falso anti-Édipo em relação à mamãe coragem, só indo ao cinema. Dona Maria Salomé estava certa: o tropicalismo que se danasse, ela queria o filho no prumo da venta. Só lhe restou pegar uns panos para lavar, ler um romance, vê as contas do mercado, como aconselhara o filho. Mamãe, mamãe não chore.

Eu, brasileiro, nesse perigo da hora, recomendo, não deixe de se ver neste filmaço: Torquato Neto — Todas as horas do fim, de Eduardo Ades e Marcus Fernando. Estreia nos cinemas na próxima quinta-feira, dia 8. Tanta violência, mas tanta ternura. Recitaria o poeta Mário Faustino (1930-1962), igualmente genial e piauiense, na sua balada eterna para um vate suicida.

Deu saudade de Teresina. De beber e conversar com Albert Piauí e Kenard Kruel. De comer “Maria Isabel”, marca da culinária da terra, um dos pratos que justificam a descoberta do fogo pelos primeiros homens da América -piauienses, óbvio, lá da serra da Capivara, se é que o leitor esclarecido me entende. Deu água na boca em pensar no capote com cuscuz que comi da vez derradeira.

Que filme, rapazes. O ator Jesuíta Barbosa, que “dubla” em off o poeta, é para arrombar a tabaca de Chola, como se diz na hipérbole pernambucana -jovens, ao Google. Bonito demais. Deu drama e dignidade a tudo na prosódia. Ler Torquato doravante é ter essa voz como eco no sótão do inconsciente.

Prestem atenção na fala de Tom Zé e no entendimento de Gilberto Gil, parceiros que compreendem, de cara, a agonia criativa de Torquato. Por favor, se liguem como as imagens do Cinema Novo de Glauber etc e do Cinema Terrir/Udigrudi de Ivan Cardoso & companhia encobrem e descobrem a inadaptação, a estranheza do Torquato-Nosferatu-do-Brasil diante do sol do tropicalismo. Era muita “alegria, alegria” para um estrangeiro do Piauí, minha gente.

O filme é tão rico que esta pobre crônica-resenha não passa de um bilhete de boas intenções aos náufragos. Torquato parece ter, tinha, a consciência da vida como permanente tic-tac das horas finais . Tanta coisa a essa altura. Três da madrugada em São Paulo, quase nada, a cidade abandonada, Irene dorme, Larissa idem, os dois corações são meus atabaques babilônicos, minhas sístoles e diástoles. Tudo e nada, a mão fria toca bem de leve em mim.

Bem que o escritor Marcelino Freire elegeu como homenageado da Balada Literária do ano passado esse gênio-mor estranhamente ainda desconhecido para muitos brasileiros. Torquato Neto ou nada. Torquato Neto ou morte.

Tanta violência, mas tanta ternura. Só vendo o filme outra vez e sempre. Beijos.


Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (editora Companhia das Letras), entre outros livros.

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