domingo, 2 de julho de 2017

Escrever é cavar

                                                        (ilustração: Ariano Suassuna)


Nem todo mundo é assim, mas para algumas pessoas escrever é cavar.
Existe uma coisa que está sendo procurada, e é preciso um esforço de remoção de entulho até chegar a essa coisa. Digamos que estamos cavando um poço. O que procuramos é a água. O que temos de remover é a terra.
Cada dia é diferente. Tem dias em que a gente mete a pá na terra, e a água já brota. Tem dias em que a gente cava dois metros de fundura e só acha terra seca.
Não depende da gente. A mente imaginativa da gente (estou falando de escritor, de quem trabalha com a mente imaginativa) produz muita terra seca, palavras que parecem dizer alguma coisa mas não dizem nada. Palavras opacas, sem brilho; palavras surdas, sem som; palavras inertes, sem vibração.
A gente vai cavando e esperando a água brotar. A água são aqueles filetes de palavras que trazem movimento, vibração de fluido, reflexos da luz em volta, murmurejamento de coisa viva. Uma frase que se a gente arrancar da página e jogar no chão ela sai andando sozinha.
Você está procurando por isso, aí escolhe um lugar onde cavar. “Vou dizer tal e tal coisa.”  Começa a cavar. Cava um metro, dois metros de fundura. Nada acontece. O que se deve fazer, então?  O que se “deve fazer” eu ainda não sei: sei o que se faz. Eu geralmente paro de cavar ali e vou cavar noutro canto.
A letra do samba empancou por falta de uma rima? Vou trabalhar meia hora naquele artigo sobre Stanley Kubrick. O artigo não está caminhando? Vou preparar as aulas daquela oficina de poesia.  A oficina não rende?  Meia hora de tradução de Chandler talvez salve esta manhã.  A tradução parou num “pig’s valise”? Talvez seja hora de voltar à letra da música. Milagre! Heureca! Achei a rima que faltava.
Eu tenho a superstição (cientificamente infundada) de que cavar um buraco ajuda a aumentar proporcionalmente os outros buracos em que estava cavando.  Acho, contra toda lógica, que trabalhar na escavação A me ajuda também a chegar mais perto da possível água contida em B, C e D.
Saber onde cavar é um dos maiores “talentos ocultos” da humanidade. Uso a palavra talento não no sentido de talento artístico, como é mais frequente no português, mas no sentido parapsicológico, sobrenatural, metapsíquico, com que a palavra “talent” é tão usada em inglês.
Talento é o que têm os rabdomantes para andar pelo sertão empunhando uma forquilhazinha de pau e em dado local parar e dizer: “Aqui tem água”. Ou, como diz o adivinhão-de-água de Ariano Suassuna em As Infâncias de Quaderna, tem “uma cordilheira de água nativa”.
O talento que tinha o Ragle Gumm de Philip K. Dick (Time Out of Joint, 1959) para adivinhar o lugar onde o homenzinho verde ia aparecer no quebra-cabeças do jornal. Ou o talento que tinha a Cayce Pollard de William Gibson (Pattern Recognition, 2003) para olhar de supetão um logotipo e saber se ia ou não funcionar com o público. Ou o talento que possibilita ao Martin Carvajal de Robert Silverberg (The Stochastic Man, 1975) adivinhar o futuro para turbinar candidaturas presidenciais, e mergulhar na crise existencial dos que já sabem tudo, tudo, tudo o que vai acontecer.
O que chamam de talento literário não é propriamente isso mas é irmão disso, a capacidade de escolher, entre as centenas de milhares de palavras do idioma, aquelas palavras que, enfileiradas, vão resultar numa história capaz de fazer o leitor dizer: “uau”. 
Conta-se que o produtor hollywoodiano Irving Thalberg, numa reunião com roteiristas, minimizou o ofício: “Grande bobagem, ser escritor. É só botar uma palavra atrás da outra”. E uma roteirista, Lenore Coffee, respondeu: “Perdão, Mr. Thalberg: é botar uma palavra certa atrás da outra”.
Como diz Glauco Mattoso: todas as palavras da Ilíada e da Odisséia estão no dicionário, só que estão fora de ordem. “Talento” é imaginar uma possível ordem para elas.
Vejam só, metalinguisticamente, o que é a escrita. Eu comecei com uma estética eliminacionista, comparando a literatura à escavação de um poço. Por essa metáfora, a literatura seria algo que já existe (a água, no lençol freático) e o trabalho do escritor seria remover alguma espécie de entulho (a terra) até descobrir uma obra preexistente.
A estética eliminacionista é a que levava Michelangelo a descrever assim suas esculturas: “Eu olho para o bloco de mármore, vejo o Moisés lá dentro, e aí basta remover tudo que não é o Moisés”.  Todos sabemos que o Moisés não está lá dentro, e que a remoção é feita por aproximações, agravadas pelo fato de não se poder errar. (Em escultura, o que é tirado não pode ser botado de novo.) Seria ótimo que o Moisés interior fosse de mármore e o resto do bloco fosse de açúcar cristalizado. Era só descascar! Mas não é assim.
Ora, está na cara que a literatura não é feita assim. O texto não “já existe” e está oculto. Muito mais útil é ver a escrita como essa busca das palavras, mas eu refinaria a definição de Mrs. Coffee dizendo que não se trata apenas de palavras.
A unidade básica da literatura não é a palavra, é a frase. Isto aqui, que aparece entre um ponto e outro. Cada vez que a gente digita “ponto, espaço” a gente volta à estaca zero: é preciso compor a próxima frase. Ela tem que se conectar à que veio antes, e à que virá depois. As frases se encadeiam como dominós. Esse conectar muitas vezes é uma questão de ruptura com o que foi dito antes, mas sempre uma ruptura que produza novo significado. Bigornas chovendo. É assim que as idéias nos tomam de assalto. Cada frase é uma bigorna que cai em nossa cabeça e precisa ser traduzida em palavras.
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

Nenhum comentário: