sexta-feira, 27 de março de 2015

Clarice contra a arrogância

          Clarice Lispector nasceu em Tchetchel, na Ucrânia, cidade localizada perto do Mar Negro, na Europa Oriental. Aos dois anos de idade, mudou-se com a família para o Recife. Seu segundo romance, "O lustre", foi escrito em Nápoles. O terceiro, "A cidade sitiada", em Berna. Muitos de seus contos foram escritos durante a temporada em que viveu na Inglaterra, acompanhando o marido, o diplomata Maury Gurgel Valente. Começou a escrever "A maçã no escuro" em Washington. O manejo genial da língua portuguesa _ ou, como prefere a filosofa francesa Hélène Cixous, do "brasileiro" _ lhe assegurou, apesar do destino errático, uma identidade brasileira. Cixous vai mais longe ainda quando afirma que Clarice escrevia, na verdade, em "lispector". Manejava uma língua própria e única, que não pode ser captura por nenhum sistema linguístico. Que não é de mais ninguém.

          Tive a alegria de me reencontrar, mais uma vez, com essa mulher que nunca está onde esperamos durante uma oficina literária sobre sua obra que dei, anteontem e ontem, em Belo Horizonte, a convite de José Eduardo Gonçalves. É sempre como se eu a encontrasse pela primeira vez. O susto é o mesmo. O esplendor também. Li Clarice, pela primeira vez, aos 19 anos de idade. Comecei por seu romance maior, "A paixão segundo GH", de 1964. Caí doente _ passei a "sofrer" do livro. Não consegui mais parar de ler. Até hoje, sempre que o releio, termino atordoado. Em 1977, estive em seu velório, no cemitério Israelita do Caju, no Rio de Janeiro. Mesmo depois de morta, Clarice nunca deixou de me assombrar. 

          Agora, reencontrando-a mais uma vez, me ponho a pensar no que me liga tão intensamente a ela e a seus escritos. Lembro-me, então, de uma sentença luminosa de Hélène Cixous, para quem Clarice faz da escrita "a arte de ter aquilo que temos". Como prefiro dizer: a arte de "cair em si". Costumamos procurar nosso destino em lugares distantes. Imaginá-lo como um ponto muito longínquo, que insiste em nos escapar e pelo qual devemos lutar. Algo a que só chegamos depois de uma grande transformação. Clarice mostra o contrário: que o destino se esconde, na verdade, dentro de nós. Ele já está ali. Ele é uma espécie de núcleo, inacessível, mais profundo que o coração, em torno do qual as palavras se limitam a rondar. Núcleo que as palavras se limitam a beijar.

          A canadense Claire Varin defende a ideia de que só conseguimos ler Clarice se usarmos o que ela chama de "método telepático". Só é possível ler Clarice se colocando no lugar de Clarice. "Sendo" Clarice. A própria Clarice Lispector escreveu certa vez: "O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor". Sabia do que falava: todo escritor é, antes disso, um leitor também. Todos nós, mesmo os mais celebrados especialistas, somos, antes de mais nada, leitores comuns.


          Ainda hoje, eu me sinto "devorado" pela escrita de Clarice. Escrita que busca o núcleo da consciência, ou, a hiper consciência. A telepatia, de que Claire nos fala, é a comunicação direta e à distância entre duas mentes. Talvez ela sirva também para definir o ato da escrita: ao escrever, Clarice tentava se comunicar com uma segunda voz, refratária e distante, que se escondia dentro dela. Sempre fracassou nesse projeto _ esse núcleo simplesmente não pode ser atingido. A insistência de Clarice, sua busca infatigável é, em resumo, sua literatura.

          Daí, provavelmente, a posição marginal que, ainda hoje, Clarice ocupa em relação ao sistema literário. Muitos tentam domesticá-la. "É uma filosofa", dizem alguns. "Faz uma literatura religiosa", dizem outros. "Não passa de uma bruxa", chegam a dizer. Nenhum nome dá conta do que Clarice fez. Sentia-se, ela própria, em algum lugar muito distante da literatura. Não era por outro motivo que não gostava de ser chamada de escritora. "Eu não escrevo para fora, escrevo para dentro". Como cidadã, foi uma mulher engajada: pode ser vista na primeira fila da Passeata dos Cem Mil, que desafiou a ditadura militar no Rio de Janeiro. Mas, como escritora, era neutra. O neutro _ que ela chamava de A Coisa, ou de O Isso _ foi seu caminho.

          O que é o neutro? É aquilo que está além da intervenção e do controle humanos. Aquela zona autônoma da vida que nem mesmo a linguagem é capaz de alcançar. Sua personagem G. H. só toca o neutro quando prova da gosma branca que escorre do corpo de uma barata morta. Sim: o neutro provoca horror, porque é violento e cru. Daí que o projeto literário de Clarice é quase suicida: ela usa a literatura para saltar para fora da literatura. "A vida se me é e eu não entendo o que digo", diz G.H. _ ressoando a voz de sua autora. Quanto ao neutro, será que ele se esconde? Parece que é o contrário: ele brilha tão intensamente que não conseguimos vê-lo. Porque ver o neutro é encarar nossa humanidade. E a humanidade, sim, é talvez o melhor sinônimo para o insuportável.

          Por isso também a literatura de Clarice não pode ser vista como um "projeto intelectual". Colocou-se, sempre, além da inteligência. A inteligência não a interessava _ buscava, ao contrário, aquilo que lhe escapava. Teve na humildade um valor fundamental. Clarice escreveu para nos fazer encarar a insuficiência da inteligência. Em conseqüência: para nos colocar diante de nossa fragilidade e impotência. Disse, certa vez, Otto Lara Resende: "É engraçado como Clarice me atinge e me enriquece, ao mesmo tempo em que me faz certo mal, me faz sentir menos sólido e seguro".

          A literatura de Clarice Lispector nos carrega para um terreno sem salvaguardas. Não temos garantias, não estamos protegidos. De quem? De nós mesmos. A queda em si não é uma experiência fácil. Daí que a escrita de Clarice é ciclônica (cheia de correntes que convergem das bordas para o centro, como nos ciclones). É, também, um turbilhão (ventos nos atravessam em alta velocidade e nos mobilizam). Parece, para alguns, uma escrita enlouquecida. Tenho um amigo, psicanalista, que sempre me pergunta: "Por que você insiste em ler essa louca? Por que ler essa mulher que diz sempre a mesma coisa?" Clarice buscou o coração selvagem da vida. É uma busca sem fim, em que os golpes e as quedas se repetem e se repetem. Ainda assim, é uma busca que nos torna menos arrogantes e mais humanos.



José Castello

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