terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Tatiana por um fio

        Um verso sintetiza a poesia de Tatiana Pequeno: “falo muito pouco naquilo que digo”. O verso surge em “Poética a pesar”, um dos mais fortes poemas de "Aceno" (Oficina Raquel). Detenho-me nessa frase, que parece desmentir a si mesma. E que se duplica, logo abaixo, em outros dois versos: “nomes são os primeiros recados/ legíveis que esquecemos”. Ambos apontam para os limites da poesia, para sua insuficiência, até mesmo para sua incompetência. Escreve-se “apesar de”. Aqui me lembro de Borges, que afirmava se julgar inferior a muitos escritores, mas se consolava com a ideia de que cada um escreve o que pode e não o que quer.

          Tatiana não esconde seu espanto diante dessa limitação. Não disfarça, porém, a melancolia, que ela, sábia, transforma em escrita. A poesia é inoperante para resgatar o real. Consola-se, porém, com a ideia de que “tudo o que não podemos tocar/ enaltece em nós a casa que está perdida”. A poesia é incompetente para dar conta do mundo _ e por isso, talvez, Borges dissesse que seu mais intenso sonho não realizado era ter sido, em vez de poeta, um “homem de ação”. Mas não se pode negar que há uma ação contundente no ato poético. Não se pode negar que, diante do objeto perdido, Tatiana ergue uma muralha que, se não o recupera, a constitui enquanto poeta.

          A poesia de Tatiana, por vezes, faz lembrar uma parede: é dura e impenetrável. Poesia narrativa, que se apóia no empenho de contar histórias que já não pode contar. “Estamos sempre à força de um segredo”, ela admite. Por isso, enquanto lemos seus versos, somos levados a pensar naquilo que fica de fora do poema _ imitando o pescador que, ao puxar sua rede do mar, se põe a pensar não nos peixes que ganhou, mas nos peixes que perdeu.

          Tatiana escreve com a postura de uma sobrevivente, que lutou a guerra das palavras, perdeu-a, mas, ainda assim, tirou algo dessa luta. Eis a prova: seu livro. Seu belo livro. Assombra-se com o que fez, como “quando não há jogo/ e o que sobra não é nem a verdade só o que/ você arrancou dela”. O poema se ergue como uma parede entre o que ela desejou fazer e o que de fato fez (Borges). Seu destino é recomeçar, e nisso um sentimento se entranha: o medo. “Eu sei que comecei tudo com muito Medo”. Esse temor _ de tentar e perder e ainda assim continuar a tentar _ faz parte, porém, do destino do poeta.

          Escreve Tatiana mais à frente, em versos fortes: “eu reconhecia a tramitação/ de uma Tristeza certa que não dizia/ respeito apenas ao teu continente/ mas sobretudo ao que houvera sido/ perdido ou nunca possível”. É com o “nunca possível” que Tatiana Pequeno combate. É através dele que desembarca no mundo. Sendo aquele que desafia a perda, o poeta é, ainda assim, um melancólico. O que é a melancolia senão a “intrusão aterradora” (cito Jacques Hassoun) do desconhecido? O que é a poesia, quando ela é, de fato, poesia e não apenas versos, senão espanto?

          Invasão _ mas também ausência. Susto _ mas também paralisia. A matéria do poeta, Tatiana nos mostra, não é propriamente a palavra, mas o “muito pouco”. Está escrito: “agora olho muito pouco/ para que/ essa atitude ampare/ o que sobrou impuro/ do próprio resgate”. Outra pista surge aqui: a da impureza. E ainda: a do pensamento sempre “por um fio”. Ocorrem-me _ colhidos em "Do desejo", livro de 2001 _ os versos tontos de Hilda Hilst: “Uma mulher suspensa entre as linhas e os dentes/ Antiquíssima ave, marionete de penas/ As asas que pensou lhe foram arrancadas”. Nem mesmo o fio _ mas o que foi arrancado. O vazio deixado por esse fio, que talvez tenha a forma de fio também.

          A poesia como parede. Como obstáculo para a própria poesia. “Se falo contido do mundo é porque/ também não o sei diferente desta dificuldade”. É no impedimento _ no não estar ali, exatamente no “não” _ que a poesia se instala. Daí que o poeta se sente, quase sempre, entregue à solidão e ao abandono. Mais ainda: sua posição no mundo o condena a se fragilizar. Mas por que o medo? Porque poeta é aquele que está diante do que não se inscreve. Escreve (ainda assim) Tatiana: “estar diante da letra que não/ se inscreve é considerar a tua morte”. Escrever o que não se escreve é atravessar o vazio. Única companhia: o medo.

          Curioso que, apesar dos obstáculos e impedimentos, os poemas de Tatiana Pequeno fazem um comovente esforço narrativo. Tenta, sempre, contar uma história. Ela cita os versos de Helga Moreira em "Os dias todos assim": “Certeza de que apenas em simulacro/ escrevo”. O simulacro é um arremedo, mas é também uma tentativa. Tem, em geral, aparência enganosa, mas isso ao poeta não importa. A poesia (que lida com vestígios) é sempre engano. Borges: você tenta uma coisa, e escreve outra. Hilda Hilst: “Do verbo eu apenas entrevi o contorno breve”. Vê com dificuldades, desdobra-se diante do intocável. Volto a Tatiana: “tudo o que não pudemos tocar/ enaltece em nós a casa que está perdida”.

          Há grande beleza, porém, nesse “contorno breve” (Hilda) que substitui o perdido. É a única maneira de que dispomos para promover sua presença. Isso faz crescer o desejo de voltar para casa, de retornar ao que perdemos, mas tudo o que resta é o desejo (Hilda de novo). Imagens persecutórias da casa perdida nos acossam, mas também nos levam a escrever. Há uma força bela no esforço que Tatiana faz para atravessar sua parede. Quanto mais se empenha, mais a parede a arranha e fere. Mais densa ela se torna. É assim que se alimenta a escrita: pelo choque.

          Existem coisas que um poeta não pode fazer. Escreve Tatiana: “não há como prender/ um grito e não há como pedir a uma/ sombra que ela se arrisque ao sol”. Existem muitas coisas que não podemos fazer. Que ninguém pode fazer. Coisas que não temos o direito de pedir. Mas sempre é possível escrever _ e as palavras esboçam uma saída. As palavras são a saída? A escrita é uma forma de teimosia. É com ela que um poeta enfrenta o desolamento. A palavra é uma região em que o poeta se arrisca e por isso, tantas vezes, a melancolia se instala. Há um inevitável desencanto _ estamos todos, sempre, “por um fio” _, mas é dele que um poeta arranca seu canto.

                (Texto publicado no suplemento "Prosa" de O GLOBO, no sábado 17-01-2015)

JOSÉ CASTELLO

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