sábado, 14 de julho de 2012

Papiro

Os escritores precisam de ter certas respostas prontas para certas perguntas tipo. Quando me perguntam “O que diz o romance”, tenho tendência a responder: “Diz mentiras lindas e perfeitas, que encerram verdades duras e exatas.” Falamos da suspensão da descrença como pré-requisito mental para apreciar a ficção, o teatro, o cinema, a pintura figurativa. São só palavras sobre a página, atores no palco ou no ecrã, cores sobre um pedaço de tela. Estas pessoas não existem, nunca existiram ou, se existiram, aqueles não passam de meras cópias, simulacros momentaneamente convincentes. Mas enquanto lemos, enquanto os nossos olhos exploram, acreditamos: que Ema vive e morre, que Hamlet mata Laertes, que este homem pensativo em vestes debruadas de pele e a sua mulher vestida de brocado poderiam sair do retrato pintado por Lotto e falar-nos no italiano de Bréscia, no século XVI. Nunca aconteceu, nunca podia ter acontecido, mas nós acreditamos que podia acontecer e que aconteceu. Tal suspensão da descrença não está longe da admissão ativa da crença. Mas não estou a sugerir que a leitura de obras de ficção possa sensibilizar-nos para a religião. Pelo contrário – muito pelo contrário: as religiões foram as primeiras grandes invenções dos escritores de ficção. Uma representação convincente e uma explicação plausível do mundo, para mentes compreensivelmente confusas. Uma história linda e perfeita, que encerra mentiras duras e exactas.

[Julian Barnes, Nada a Temer; trad. Helena Cardoso, Quetzal]

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