Num pequeno conto chamado "O abutre", das Narrativas do espólio, de Kafka (na invulgar tradução de Modesto Carone), o narrador conta, em primeira pessoa, que um abutre, após bicar suas botas e meia, estraçalhava-lhe os pés. Outro homem, ao ver a cena, perguntou-lhe por que permitia a ação do abutre. O narrador apenas pode informar que estava indefeso, que após enxotá-lo, e até tentar enforcá-lo, decidiu sacrificar-lhe os pés no lugar do rosto primeiramente almejado pelo abutre. O homem, indignado com o fato de que alguém se deixasse torturar daquela maneira, sugeriu buscar sua espingarda em casa para dar um tiro no animal. Demoraria uma meia hora, tempo que o sujeito dos pés carcomidos não sabe se suportaria. Sem ter nada a perder, aceitou a oferta de ajuda. Enquanto isso, conta-nos o narrador, o abutre escutou calmamente a conversa entre os dois entendendo tudo o que conversavam entre si: "(...) levantou vôo, fez a curva da volta bem longe para ganhar ímpeto suficiente e depois, como um lançador de dardos, arremessou até o fundo de mim o bico pela minha boca. Ao cair para trás, senti, liberto, como ele se afogava sem salvação no meu sangue, que enchia todas as profundezas e inundava todas as margens".
Talvez esse tenha sido um pesadelo de Kafka. Não importa. É dos conto s mais enigmáticos que se pode ler. Evidente surrealismo que nos faria simplesmente admirar a idéia na contramão do real, o conto, no entanto, carrega uma pista simbólica que não pode ser deixada de lado na análise daquilo que nos impele a agir. Também Prometeu, no mito fundador da relação entre o homem ocidental e o conhecimento, teve um de seus órgãos, o fígado, carcomido pela eternidade por um abutre. Pagou pelo seu feito. Prometeu foi punido pelos deuses do Olimpo, por ter dado aos homens o fogo, em seu caráter altamente simbólico de alcance do conhecimento. O homem de Kafka, no entanto, não pode ser punido por nada porque não fez nada a ninguém. Não pode ser acusado não apenas porque sendo moderno já não é controlado pelos deuses nem conhece a eternidade, mas porque está só em seu sofrimento. A culpa objetivamente não existe, talvez pese fantasmagoricamente sobre o sujeito causando-lhe a dor. O conto, porém, não nos informa sobre nada disso. S ó o que sabemos é que ele não pode fazer nada, está indefeso. Indignados como o homem da espingarda, este outro civilizado que nos habita, perguntamo-nos, por quê? A resposta está ali. Após tentativas de escapar, até a tentativa de enforcar o animal, sucumbe-se à sua força. O abutre é mais forte do que o homem e, por isso, este é carcomido por aquele e não, obviamente, o contrário. O homem nem pode sofrer de solidão, pois desde sempre está acompanhado pelo abutre. Seria o abutre um emblema da melancolia que da punição de Prometeu com a angustiante prisão no abismo ao homem encurralado de Kafka, não cessa seu gesto de tortura da qual é impossível fugir? Talvez o abutre seja o emblema de todo o sofrimento que acompanha o homem e que jamais permitirá que ele viva só. É o sofrimento que nos vigia e que se apresenta com a única e incontornável solução que se apresenta, ontem como hoje, como pergunta: por quê?
É a relação entre a força do abutre e a fraqueza do homem que sinaliza o ensinamento do conto em seu caráter de fábula deixado, por Kafka, à interpretação de seu leitor. Sabemos que as Narrativas do Espólio não deviam ser publicadas, e, por isso, esse leitor não estava, para ele, de modo algum, sacramentado. Pertencem-nos apenas pelo caráter clandestino do fado que ousa interromper o desejo de qualquer um. Não é menor a clandestinidade daquilo que ele nos revela e que reside no homem como uma interrupção de tudo o que ele projetou para si em termos de felicidade, conquista do sucesso, realização, satisfação. O abutre não é apenas a incapacidade de ser feliz ou a vigilância que o nosso próprio sofrimento, tão atuante quanto o desejo, opera sobre nós. Ele não é apenas a figura da desgraça que nos abate. Ele é a confusa performance da impotência da ação que se apresenta mais forte do que toda a nossa capacidade de agir.
"O abutre", de Kafka é nosso. Ele nos coloca diante do desenho completo que carrega o enigma da inação. Se os personagens de Kafka representam uma alegoria, ela diz respeito ao que em nós desiste de agir por impotência enquanto um outro, sabendo o que deve ser feito, possuindo uma arma redentora, vai a buscar socorro sem nunca voltar. Ambos os personagens falam da condição humana. Do ser humano que entregue às próprias tentativas e esperanças é sempre por último observado pelo que nele há de mais forte, a sua própria impotência.
Enquanto é observado pelo próprio princípio do mal que tem olhos só para si, nele se opera o seu próprio reconhecimento na satisfação de que, por fim, tudo encontre alento pelo simples fato de que somos um com ele. O abutre que hoje age sobre as bases (o abutre carcome nossos pés com os quais poderíamos ir a algum lugar; ontem, carcomia o fígado, órgão que produzia a bile e, em seu negror, a melancolia) morre, como no homem de Kafka, por seu próprio gesto capaz de ir ao mais fundo de nós. Aquilo que nos carcome é o que nos olha entendendo todos os acordos que possamos fazer para derrotá-lo. É aquilo que tendo o máximo poder sobre nós se afoga em nosso próprio sangue. Está em nós e inundou todas as nossas margens.
Derrotar o abutre é derrotar a si mesmo. A inação do homem, sua incapacidade de fazer um mundo diferente - mais justo, menos violento - deveria ser usada a seu favor, como resistência. A inação do homem também nos ensina que o abutre pode ser morto. Ainda que o carreguemos como parte do líquido da vida e fiquemos mancos para sempre. Tal é a potência dúplice da ação: é preciso fazer, é preciso resistência, mas é igualmente preciso entender a força da impotência.
Marcia Tiburi
Publicado na Revista Cult
Talvez esse tenha sido um pesadelo de Kafka. Não importa. É dos conto s mais enigmáticos que se pode ler. Evidente surrealismo que nos faria simplesmente admirar a idéia na contramão do real, o conto, no entanto, carrega uma pista simbólica que não pode ser deixada de lado na análise daquilo que nos impele a agir. Também Prometeu, no mito fundador da relação entre o homem ocidental e o conhecimento, teve um de seus órgãos, o fígado, carcomido pela eternidade por um abutre. Pagou pelo seu feito. Prometeu foi punido pelos deuses do Olimpo, por ter dado aos homens o fogo, em seu caráter altamente simbólico de alcance do conhecimento. O homem de Kafka, no entanto, não pode ser punido por nada porque não fez nada a ninguém. Não pode ser acusado não apenas porque sendo moderno já não é controlado pelos deuses nem conhece a eternidade, mas porque está só em seu sofrimento. A culpa objetivamente não existe, talvez pese fantasmagoricamente sobre o sujeito causando-lhe a dor. O conto, porém, não nos informa sobre nada disso. S ó o que sabemos é que ele não pode fazer nada, está indefeso. Indignados como o homem da espingarda, este outro civilizado que nos habita, perguntamo-nos, por quê? A resposta está ali. Após tentativas de escapar, até a tentativa de enforcar o animal, sucumbe-se à sua força. O abutre é mais forte do que o homem e, por isso, este é carcomido por aquele e não, obviamente, o contrário. O homem nem pode sofrer de solidão, pois desde sempre está acompanhado pelo abutre. Seria o abutre um emblema da melancolia que da punição de Prometeu com a angustiante prisão no abismo ao homem encurralado de Kafka, não cessa seu gesto de tortura da qual é impossível fugir? Talvez o abutre seja o emblema de todo o sofrimento que acompanha o homem e que jamais permitirá que ele viva só. É o sofrimento que nos vigia e que se apresenta com a única e incontornável solução que se apresenta, ontem como hoje, como pergunta: por quê?
É a relação entre a força do abutre e a fraqueza do homem que sinaliza o ensinamento do conto em seu caráter de fábula deixado, por Kafka, à interpretação de seu leitor. Sabemos que as Narrativas do Espólio não deviam ser publicadas, e, por isso, esse leitor não estava, para ele, de modo algum, sacramentado. Pertencem-nos apenas pelo caráter clandestino do fado que ousa interromper o desejo de qualquer um. Não é menor a clandestinidade daquilo que ele nos revela e que reside no homem como uma interrupção de tudo o que ele projetou para si em termos de felicidade, conquista do sucesso, realização, satisfação. O abutre não é apenas a incapacidade de ser feliz ou a vigilância que o nosso próprio sofrimento, tão atuante quanto o desejo, opera sobre nós. Ele não é apenas a figura da desgraça que nos abate. Ele é a confusa performance da impotência da ação que se apresenta mais forte do que toda a nossa capacidade de agir.
"O abutre", de Kafka é nosso. Ele nos coloca diante do desenho completo que carrega o enigma da inação. Se os personagens de Kafka representam uma alegoria, ela diz respeito ao que em nós desiste de agir por impotência enquanto um outro, sabendo o que deve ser feito, possuindo uma arma redentora, vai a buscar socorro sem nunca voltar. Ambos os personagens falam da condição humana. Do ser humano que entregue às próprias tentativas e esperanças é sempre por último observado pelo que nele há de mais forte, a sua própria impotência.
Enquanto é observado pelo próprio princípio do mal que tem olhos só para si, nele se opera o seu próprio reconhecimento na satisfação de que, por fim, tudo encontre alento pelo simples fato de que somos um com ele. O abutre que hoje age sobre as bases (o abutre carcome nossos pés com os quais poderíamos ir a algum lugar; ontem, carcomia o fígado, órgão que produzia a bile e, em seu negror, a melancolia) morre, como no homem de Kafka, por seu próprio gesto capaz de ir ao mais fundo de nós. Aquilo que nos carcome é o que nos olha entendendo todos os acordos que possamos fazer para derrotá-lo. É aquilo que tendo o máximo poder sobre nós se afoga em nosso próprio sangue. Está em nós e inundou todas as nossas margens.
Derrotar o abutre é derrotar a si mesmo. A inação do homem, sua incapacidade de fazer um mundo diferente - mais justo, menos violento - deveria ser usada a seu favor, como resistência. A inação do homem também nos ensina que o abutre pode ser morto. Ainda que o carreguemos como parte do líquido da vida e fiquemos mancos para sempre. Tal é a potência dúplice da ação: é preciso fazer, é preciso resistência, mas é igualmente preciso entender a força da impotência.
Marcia Tiburi
Publicado na Revista Cult
Um comentário:
Até quando o homem será o lobo do homem ?
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