segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A espionagem eletrônica

Vi pelas redes sociais uma propaganda de gadget eletrônico que diz: “Agora você pode rastrear o seu carro usando o seu smartphone.” Essa frase é acompanhada pela foto de uma mulher loura, no banco do carona de um carro, segurando (na verdade mostrando para a câmera, para a qual sorri) o que parece ser um pequeno disquete.

Querer destrinchar um conceito produzido por uma equipe de publicitários é uma ilusão, mas vamos lá. Um leitor marcha-lenta irá perguntar: “Ora, mas se o carro é meu e quem anda nele sou eu, pra quê que eu preciso rastrear?”  Uma resposta bem contemporânea seria: “Caba leso, se roubarem teu carro, tu não ia querer saber onde ele tá não?!”

Há mil e um veículos (de carga, oficiais, etc.) que são normalmente rastreados pelas empresas a que pertencem, mas a possibilidade agora está ao alcance de qualquer mero possuidor de smartphone. O que a mulher loura sugere na foto do anúncio é que o carro é do marido (ela está no banco do carona), e que quem vai rastrear é ela. Muita mulher sem malícia irá ter um susto ao perceber essa possibilidade e pela primeira vez pensará, maliciosa: “Aaaah!...”  E o leitor masculino dará de ombros. Pau que bate em Chico bate em Francisco.

Contudo, o mais interessante do anúncio é a formulação da frase: “Agora você pode rastrear o seu carro usando o seu smartphone.”  Esses pronomes possessivos estão aí numa função de folha de parreira, ou seja, para fazer de conta que está ocultando o óbvio. O sentido prático e inegociável da mensagem transmitida é: “Agora pode-se rastrear qualquer carro usando um smartphone.” 

Essa é a mensagem concreta que está sendo passada. O “seu” entra aí para que a agência publicitária, se confrontada com o cenho franzido da Lei, possa dizer: “Mas nós não sugerimos ao consumidor que ele saia por aí rastreando ninguém, nós sugerimos especificamente que era para poder vigiar o carro dele, sua propriedade inalienável, bibibi, bobobó.”

Um artigo recente de Cory Doctorow na Locus discute a enorme permeabilidade de todas as coisas eletrônicas, quando seu alcance é multiplicado pelo sem-fio, e quando o hardware de interatividade se torna universal (ou seja, custa uma mixaria). 


Em breve maridos e esposas, patrões e empregados, polícias e bandidos, banqueiros e banqueiros e assim por diante poderão se rastrear uns aos outros através não de um automóvel, mas de um button (atenção, não é “bottom” que se escreve), um crachá, uma carteira de identidade informatizada, um chip implantado no primeiro dia de trabalho (previsto em contrato, com aprovação sindical), um livro dado de presente, uma roupa, uma implantação dentária ou pequena cirurgia feitas com outro pretexto.

Dize-me se andas, e eu te direi em que direção estás indo.

Na trilogia “Science in the Capital” de Kim Stanley Robinson” (aqui: https://www.amazon.com/Forty-Signs-Rain-Stanley-Robinson/dp/0553585800/ref=sr_1_1),  Frank Vanderwal arranja uma namorada que é casada e trabalha para a CIA, e em cada encontro ela precisa usar um detector para se certificar de que nenhum dos dois está com um bug implantado. Frank geralmente está, e não faz idéia de como puseram aquilo ali. Uma moeda, um pequeno adesivo colado às escondidas no aperto de um elevador, qualquer coisa minúscula capaz de emitir um sinal.

Em Onde os Fracos Não Têm Vez, de Cormac MacCarthy (filmado pelos irmãos Coen), um transmissor desse tipo (só que em tamanho maiorzinho) é encontrado tarde demais. No romance de William Gibson Zero History, o personagem acha um aparelhinho que o denunciava e dá um jeito de, num shopping, jogá-lo dentro do carrinho do bebê de uma mulher russa, chique, que passeia vigiada por dois seguranças.

A mão de escrever argumento chega treme ao pensar nas ramificações dramatúrgicas dessa tecnologia.

Tem um componente adicional. Nem falo de atitudes espionatórias como a de rastrear o percurso físico de um cidadão, uma tarefa zerozerossetiana que qualquer agente interpretado por William H. Macy é capaz de executar. Falo no acúmulo de dados sobre a pessoa de cada um de nós. Se você tem cartão bancário, cartão de crédito, número de CPF, se você usa computador e smartphone, já existem a esta altura alguns terabytes de atividades suas espalhadas em pacotes por servidores do mundo inteiro.

Ninguém apaga nada. Custo de estocagem desse tipo de informação decresce à medida que crescem os estoques. E os algoritmos de cruzar informações são cada vez mais discriminadores e mais rápidos.

E não adianta o velho e confortável argumento de que “quem não deve não teme”, e que “um cidadão de bem não tem o que recear”.

Porque o fato é que, num futuro breve, havendo necessidade, será possível levantar em algumas horas uma quantidade espantosa de informação sobre qualquer um de nós. Ela já existe, basta saber puxar para fora. E puxar organizadamente. Ele gasta com que? Viaja para onde? Conversa com quem? Recebe dinheiro de onde? Pergunta o que ao Google? Passeia por onde no browser? Guarda o que no seu HD pessoal?

Na época da Revolução Francesa conhecida como o Terror o ódio pelos aristocratas era tão grande que muitas vezes bastava uma denúncia qualquer para mandar um cara (que era tão povo quanto os outros da sua rua) para a guilhotina: “Ele sempre foi amigo dos aristocratas!” dizia um vizinho ressentido, e lá ia a cabeça do cidadão para o cesto.

Qual a última pessoa (ou grupo) em cujas mãos você não quereria de jeito nenhum ver todos os seus emails, todos os seus telefonemas, toda sua vida financeira, tudo que você já viu num monitor, ou que já chamou com um clique? 
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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