— E ela é bonita?
Perguntei por perguntar, sou mesmo muito perguntador, mas ele reagiu
como se eu tivesse lhe aplicado um choque.
Até aquela altura da conversa, só ele falava, enfático, preenchendo
com sua gesticulação desgalhada um vasto espaço em torno, por pouco
não me acertando, em sua exuberância, uns involuntários tabefes. O
assunto obsessivo era a moça, as inigualáveis qualidades da moça, e
para enumerá-las meu amigo se esparramava, equilibrando-se à beira
do ridículo. Às vezes empacava, sem palavras para descrever o
indescritível, e a empolgação se metamorfoseava em algo que lembrava
o ar beatífico, meio abobalhado, de quem, entre os banhistas,
despistadamente faz xixi no mar.
— Bonita? — insisti.
Como num desses programas de TV em que a resposta vai levar à
fortuna ou ao infortúnio, ele franziu os lábios numa rosquinha
pregueada, apanhou o queixo entre dois dedos, revirou os olhos para
o alto, ruminativo — e por fim desembuchou, numa hesitação tamanha
que dava para ver uns hifens pingando entre as sílabas:
— Ela é... interessante.
Bem que eu desconfiava: a moça era feia. Prendada, virtuosa,
trabalhadora, o diabo — mas bonita não era. Se fosse, não haveria
lábios franzidos, dedos beliscando o queixo nem olhos perscrutando
os céus: bonita é bonita, ponto. E interessante — as muito
interessantes que me perdoem — está mais para feia. Se a gente
recorre a esse adjetivo, é para camuflar uma ausência de formosura.
(Antes que me
acusem de machismo: vale também, é claro, para o sexo masculino, só
que marmanjo não está socialmente obrigado à formosura.)
Não é tão simples assim, eu sei. No extenso território que vai da
beleza à feiura, há de tudo e um pouco mais. Meu avô achava que a
balança pendia decididamente para um lado, e me lembro, menino, da
observação que fez enquanto esperávamos, no centro de Belo
Horizonte, abrir-se o sinal para os pedestres. “Meu filho, como a
humanidade e feia!”, sussurrou ele, olhos na manada que, no lado
oposto, também engatilhava o bote. Ressentimento? Não, o vovô Santos
era um belo homem. Arrogância, também não, pois não lhe faltava
compaixão pelo ser humano, aí incluídos os bonitos. Sua observação
tinha o corte frio das constatações empíricas.
Talvez num centro de cidade, em países como o nosso, a humanidade,
vivendo à margem dos spas, academias e salões de beleza, à margem
sobretudo das proteínas consumidas desde o berço, penda mesmo para a
fealdade. Mas sempre se podem comparar coisas comparáveis. No
centro, como nos redutos ricos, pessoas há que são flagrantemente
bonitas e outras insofismavelmente feias. Há também — e aqui a coisa
se torna um tanto mais sutil — gente que é bonita-aos-poucos e gente
que é feia-aos-poucos.
Não é caso, por favor, de sair correndo rumo ao próximo espelho.
Você sabe do que estou falando. Daquelas pessoas que, no primeiro
contato, nos parecem feias ou bonitas, e que, com o correr do tempo,
às vezes pouquíssimo tempo, vão mudando de lugar em nosso espectro
estético. Os olhos não são belos, o nariz é um nariz qualquer e as
orelhas, de abano ou com os lóbulos por demais grudados à cabeça —
mas, de repente, a reunião desses “aparelhinhos”, como dizia minha
mãe, vai compondo um arranjo potável, daqui a pouco apetecível, quem
sabe mesmo, no final da noite, irresistível. Também o contrário pode
se passar: a progressiva sem-graceza de um conjunto formado por
peças que, individualmente, são irretocáveis — e a pessoa que nos
parecia linda vai assumindo um feiume tão insuspeitado quanto
inapelável, até tornar-se, no máximo, interessante. Mais do que com
os “aparelhinhos”, num caso como no outro o ajuste de foco tem a ver
com encantos imateriais, imponderáveis — com a presença, quase
sempre, do misterioso atributo que se chama borogodó, invisível para
os olhos. Razão pela qual devo insistir: inútil você sair correndo
para conferir no espelho.
(7/11/2009)
Humberto Werneck
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