segunda-feira, 24 de outubro de 2016

‘Cherchez’

Neste lodaçal moral em que vivemos, quase nenhuma mulher é citada em casos de corrupção ativa. Cabe-lhes apenas um papel passivo, quando não invisível
Donald Trump durante debate dos pré-candidatos republicanos, promovido pela CNN (Foto: Mark J. Terrill / AP) 
Donald Trump (Foto: Mark J. Terrill / AP)
Como capo dei capi da máfia nos Estados Unidos, Al Capone foi responsável pela morte de dezenas de concorrentes, policiais e quem teve a má sorte de ficar no meio do tiroteio. Todo mundo sabia da sua atividade criminosa, mas a lei não conseguia pegá-lo. E ele acabou sendo condenado pelo crime menor de sonegação de impostos.

Donald Trump não será derrotado pelas barbaridades e as mentiras que diz e nem por não pagar impostos, mas pelo seu, digamos, voluntarismo sexual. Trump insulta mulheres nos seus pronunciamentos e as assedia sexualmente fora do ar, e tem assediadas fazendo fila para denunciá-lo. Os desmandos sexuais do louro lhe custarão a eleição, a não ser que, até lá, apareça algum caso da Hillary com um mexicano.

Curiosamente, no Brasil não vale aquele velho mandamento francês: em caso de confusão, crise ou crime, sempre cherchez la femme, procure-se a mulher. Na nossa história, por mais que se “chercheie”, jamais se encontrará uma mulher como causa de escândalos políticos — pelo menos que apareça. Revelações de adultério ou indiscrição sexual já custaram a carreira de muitos políticos americanos.

A cena se repete: flagrado ciscando fora do galinheiro matrimonial, o político contrito pede desculpas à nação, com a mulher enganada firme ao seu lado, com cara de “ele é um imbecil, mas se regenerou”. No Brasil, uma revelação parecida não aconteceria, ou, se acontecesse, não chegaria ao noticiário, ou, se chegasse ao noticiário, não afetaria a carreira do político, ou, se afetasse, poderia — numa sociedade machista como a nossa — até ajudá-lo.

A imprensa brasileira, mesmo a mais investigativa ou sensacionalista, trata escândalos sexuais com um certo pudor. Neste lodaçal moral em que vivemos, quase nenhuma mulher é citada em casos de corrupção ativa. Cabe-lhes apenas um papel passivo, quando não invisível, seja ela a legítima ou a outra. Mulheres poderiam muito bem reclamar da discriminação.

Por que só homens podem ser corruptos? Por que só eles podem ser escoltados pelo japonês da Federal? E o papel delas nas falcatruas? No último debate entre os candidatos antes da eleição presidencial americana, Trump declarou que todas as acusações de assédio sexual contra ele eram de mulheres atrás dos seus 15 minutos de fama, e pura ficção.

Mas o mais destacado pelos comentaristas depois do debate foi a insinuação de Trump de que ele poderia não aceitar o resultado da eleição em caso de derrota. Se a sua contestação chegar à Suprema Corte, com sua maioria de juízes conservadores, a coisa pode melar. Foi lembrado que o mesmo tribunal deu a vitória a Bush sobre Al Gore, com uma decisão sobre a validade de votos que até hoje é criticada.

Luís Fernando Veríssimo
Do Blog do Noblat

Nenhum comentário: