Essa
candidatura de Dylan ao prêmio Nobel é coisa velha. Há muitos anos que vejo, nos
saites dos fãs, imagens da documentação de inscrição oficial, etc.
Já
escrevi aqui sobre as listas de Prêmios Nobel Alternativos, que sugerem
substituir premiados que ninguém conhece por autores muito mais significativos
e que nesse mesmo ano estavam no auge de suas obras. Gente como Franz Kafka ou Philip
K. Dick ou Jorge Luís Borges, que nunca ganharam.
O
crítico Ted Gioia (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2009/12/1440-o-premio-nobel-alternativo.html)
sugere que em vez do poeta Derek Walcott (1992) a Academia deveria nesse ano
ter premiado Bob Dylan. Já nessa época
não concordei. Li pouca coisa de Walcott
mas concordo que seja um grande poeta e mereça o prêmio – seja lá o que isso
signifique em termos de grana, imagem, poder, acesso.
Nunca
achei que Dylan ganhasse. E também nunca liguei muito. Para não parecer que
estou esnobando o prêmio Nobel, eu até acompanho bastante essa fórmula-um, sei
do impacto que produz. Daí a considerar que os acadêmicos suecos sabem o que é
boa literatura e eu não, vai uma grande distância. Mas o leitor leigo, que
precisa de um formador de opinião para lhe sugerir o que pensar, fica
atarantado diante dessas decisões inesperadas.
Dylan ganhou por suas canções, mas tem dois livros
excelentes, cada qual dentro do seu subgênero, sua época.
Tarantula (1966) é um
daqueles textos-colagem de pequenos episódios absurdistas saturados de
referências da cultura pop. É quase um prolongamento das Contracapas escritas
por Dylan para a maioria dos seus álbuns, principalmente a prosa estilhaçante e
eletrificada dos textos incluídos em Bringin’
It Alll Back Home (1965) e Highway 61
Revisited (1965). Uma prosa prima dos textos beat de Ginsberg, Burroughs e Kerouac.
O
outro livro, que me surpreendeu, porque não esperava grande coisa dele, foi sua
recolha de memórias, Crônicas, vol. 1
(2004 – aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2008/12/0680-bob-dylan-sabe-escrever-2452005.html).
Muita gente pensou que seria uma autobiografia cobrindo, quem sabe, a primeira
metade da carreira do cantor. E de fato ele fala bastante da New York pós-1960
onde caiu de paraquedas e decolou de foguete. Mas pula para a frente e para
trás, fala pouquíssimo dos seus discos mais importantes, a cronologia
rapidamente vai pro espaço.
A
prosa de Dylan é surpreendentemente bem escrita, precisa, descrevendo o
ambiente enfumaçado do Greenwich Village, mostrando os tipos, os cantores, os
intelectuais, a malucada, comentando tudo. Alguns críticos observaram que Dylan
nesses capítulos iniciais “ressuscitou” vários tipos da cena folk novaiorquina
desse tempo.
Ele
faz muitos comentários bons sobre seu processo criativo, inclusive tentando
explicar uma regra numérica que tem para compor suas músicas, a qual parece até
fazer sentido, embora eu não tenha entendido até hoje.
Perto
do final do livro ele conta como sua namorada Suze Rotolo o levou para assistir
um ensaio do grupo para o qual ela fazia trabalhos de design. O espetáculo se chamava Brecht
on Brecht, e era cheio de canções de Bertolt Brecht e Kurt Weill.
Dylan
descreve, com uma precisão emocionada, como, ao ouvir as canções de Brecht e
Weill, principalmente Pirate Jenny,
ele entendeu como escrever uma canção que fosse além das canções folk.
Ele
diz:
“Aquela
canção era um estímulo novo para meus sentidos, sem dúvida muito parecida com
uma canção folk mas uma canção folk de outra jarra e de outro terreno. Minha
vontade era pegar um molho de chaves e sai pesquisando esse território, ver se
tinha mais alguma coisa por ali. Desmontei a canção inteirinha e abri para
olhar dentro dela – era aquela forma, aqueles versos em livre associação, a
estrutura, o descaso pela certeza dos padrões melódicos, tudo fazendo com que a
canção ganhasse peso, ganhasse um gume afiado.”
Já
virou um clichê da crítica aludir a Dylan falando em Rimbaud, e ele próprio de
vez em quando faz uma referência. Mas parece que o impacto da poesia do “pobre
B. B.” sobre ele foi mais fecundo. Foi Brecht, visto num pequeno palco de
ensaios off-Broadway, que lhe deu o estalo-de-Vieira criativo.
Dylan
estava acostumado às canções folk norte-americanas, aquela simetria de estrofes
idênticas do começo ao fim (como em nosso cordel), e as melodias anasaladas,
proclamatórias e circulares das tradicionais baladas inglesas ou irlandesas. As
imagens cortantes dos versos de Brecht e as dissonâncias controladas de Weill
não passaram em branco.
Robert
Shelton (The Bob Dylan Encyclopedia)
registra que logo depois disto, em agosto de 1963, a revista musical Broadside publicou uma carta elogiosa de
Dylan, no seu estilo ziguezagueante da época:
“Aleluia
para vocês todos por terem colocado Brecht neste número mais recente da
revista. Ele devia ser tão conhecido quanto Woody [Guthrie], e ser tão lido
quanto Mickey Spillane”.
Pois
é... fico eu falando de literatura e me esqueço de comentar A Coisa Mais
Importante Do Mundo: os prêmios literários, que, para grande parte dos
escritores de hoje, são o motivo principal de se escrever um livro.
Fico
feliz com o prêmio para Dylan, não por ele, que não precisa de prêmio nenhum,
mas pela discussão em torno de poesia, literatura e letra de música, uma
discussão importante, se bem que geralmente baseada em premissas erradas.
Minha
posição a respeito (que defendo aqui há muitos anos) é de que: 1) “Poesia”,
“Letra de Canção”e “Literatura” pertencem ao mesmo campo artístico, usam a
mesma matéria-prima (a palavra), e têm cada qual sua especificidade, mas
nenhuma das três confere qualidade a uma obra: existe a poesia boa e má, a
letra de música boa e má, a literatura boa e má. 2) O prêmio foi justíssimo: acho
Dylan um dos grandes poetas do século 20.
E
para consolar os inconsoláveis, transcrevo o depoimento de Greil Marcus (um dos
melhores críticos de rock que conheço, fã e grande conhecedor de Dylan), sobre
a possibilidade dele ganhar o Nobel, num depoimento de 2005:
“Eu
espero que ele não ganhe esse prêmio. Existem milhares de escritores que
precisam do prêmio mais do que ele. É um prêmio para a literatura; ele é um
compositor, ele é um cantor, ele é um artista do palco. Seja como for, Bob
Dylan já ganhou uma infinidade de prêmios, não precisa de mais este. Há muita
gente que precisa desse dinheiro, que precisa de mais leitores.”
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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