domingo, 16 de outubro de 2016

Um prêmio Nobel pra Bob Dylan

Essa candidatura de Dylan ao prêmio Nobel é coisa velha. Há muitos anos que vejo, nos saites dos fãs, imagens da documentação de inscrição oficial, etc. 
Já escrevi aqui sobre as listas de Prêmios Nobel Alternativos, que sugerem substituir premiados que ninguém conhece por autores muito mais significativos e que nesse mesmo ano estavam no auge de suas obras. Gente como Franz Kafka ou Philip K. Dick ou Jorge Luís Borges, que nunca ganharam.
O crítico Ted Gioia (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2009/12/1440-o-premio-nobel-alternativo.html) sugere que em vez do poeta Derek Walcott (1992) a Academia deveria nesse ano ter premiado Bob Dylan.  Já nessa época não concordei.  Li pouca coisa de Walcott mas concordo que seja um grande poeta e mereça o prêmio – seja lá o que isso signifique em termos de grana, imagem, poder, acesso.
Nunca achei que Dylan ganhasse. E também nunca liguei muito. Para não parecer que estou esnobando o prêmio Nobel, eu até acompanho bastante essa fórmula-um, sei do impacto que produz. Daí a considerar que os acadêmicos suecos sabem o que é boa literatura e eu não, vai uma grande distância. Mas o leitor leigo, que precisa de um formador de opinião para lhe sugerir o que pensar, fica atarantado diante dessas decisões inesperadas.
Dylan  ganhou por suas canções, mas tem dois livros excelentes, cada qual dentro do seu subgênero, sua época.
Tarantula (1966) é um daqueles textos-colagem de pequenos episódios absurdistas saturados de referências da cultura pop. É quase um prolongamento das Contracapas escritas por Dylan para a maioria dos seus álbuns, principalmente a prosa estilhaçante e eletrificada dos textos incluídos em Bringin’ It Alll Back Home (1965) e Highway 61 Revisited (1965). Uma prosa prima dos textos beat de Ginsberg, Burroughs e Kerouac.
O outro livro, que me surpreendeu, porque não esperava grande coisa dele, foi sua recolha de memórias, Crônicas, vol. 1 (2004 – aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2008/12/0680-bob-dylan-sabe-escrever-2452005.html). Muita gente pensou que seria uma autobiografia cobrindo, quem sabe, a primeira metade da carreira do cantor. E de fato ele fala bastante da New York pós-1960 onde caiu de paraquedas e decolou de foguete. Mas pula para a frente e para trás, fala pouquíssimo dos seus discos mais importantes, a cronologia rapidamente vai pro espaço.
A prosa de Dylan é surpreendentemente bem escrita, precisa, descrevendo o ambiente enfumaçado do Greenwich Village, mostrando os tipos, os cantores, os intelectuais, a malucada, comentando tudo. Alguns críticos observaram que Dylan nesses capítulos iniciais “ressuscitou” vários tipos da cena folk novaiorquina desse tempo.
Ele faz muitos comentários bons sobre seu processo criativo, inclusive tentando explicar uma regra numérica que tem para compor suas músicas, a qual parece até fazer sentido, embora eu não tenha entendido até hoje.
Perto do final do livro ele conta como sua namorada Suze Rotolo o levou para assistir um ensaio do grupo para o qual ela fazia trabalhos de design. O espetáculo se chamava Brecht on Brecht, e era cheio de canções de Bertolt Brecht e Kurt Weill.
Dylan descreve, com uma precisão emocionada, como, ao ouvir as canções de Brecht e Weill, principalmente Pirate Jenny, ele entendeu como escrever uma canção que fosse além das canções folk.
Ele diz:
“Aquela canção era um estímulo novo para meus sentidos, sem dúvida muito parecida com uma canção folk mas uma canção folk de outra jarra e de outro terreno. Minha vontade era pegar um molho de chaves e sai pesquisando esse território, ver se tinha mais alguma coisa por ali. Desmontei a canção inteirinha e abri para olhar dentro dela – era aquela forma, aqueles versos em livre associação, a estrutura, o descaso pela certeza dos padrões melódicos, tudo fazendo com que a canção ganhasse peso, ganhasse um gume afiado.”
Já virou um clichê da crítica aludir a Dylan falando em Rimbaud, e ele próprio de vez em quando faz uma referência. Mas parece que o impacto da poesia do “pobre B. B.” sobre ele foi mais fecundo. Foi Brecht, visto num pequeno palco de ensaios off-Broadway, que lhe deu o estalo-de-Vieira criativo.
Dylan estava acostumado às canções folk norte-americanas, aquela simetria de estrofes idênticas do começo ao fim (como em nosso cordel), e as melodias anasaladas, proclamatórias e circulares das tradicionais baladas inglesas ou irlandesas. As imagens cortantes dos versos de Brecht e as dissonâncias controladas de Weill não passaram em branco.
Robert Shelton (The Bob Dylan Encyclopedia) registra que logo depois disto, em agosto de 1963, a revista musical Broadside publicou uma carta elogiosa de Dylan, no seu estilo ziguezagueante da época:
“Aleluia para vocês todos por terem colocado Brecht neste número mais recente da revista. Ele devia ser tão conhecido quanto Woody [Guthrie], e ser tão lido quanto Mickey Spillane”.
Pois é... fico eu falando de literatura e me esqueço de comentar A Coisa Mais Importante Do Mundo: os prêmios literários, que, para grande parte dos escritores de hoje, são o motivo principal de se escrever um livro.
Fico feliz com o prêmio para Dylan, não por ele, que não precisa de prêmio nenhum, mas pela discussão em torno de poesia, literatura e letra de música, uma discussão importante, se bem que geralmente baseada em premissas erradas.
Minha posição a respeito (que defendo aqui há muitos anos) é de que: 1) “Poesia”, “Letra de Canção”e “Literatura” pertencem ao mesmo campo artístico, usam a mesma matéria-prima (a palavra), e têm cada qual sua especificidade, mas nenhuma das três confere qualidade a uma obra: existe a poesia boa e má, a letra de música boa e má, a literatura boa e má. 2) O prêmio foi justíssimo: acho Dylan um dos grandes poetas do século 20.
E para consolar os inconsoláveis, transcrevo o depoimento de Greil Marcus (um dos melhores críticos de rock que conheço, fã e grande conhecedor de Dylan), sobre a possibilidade dele ganhar o Nobel, num depoimento de 2005:
“Eu espero que ele não ganhe esse prêmio. Existem milhares de escritores que precisam do prêmio mais do que ele. É um prêmio para a literatura; ele é um compositor, ele é um cantor, ele é um artista do palco. Seja como for, Bob Dylan já ganhou uma infinidade de prêmios, não precisa de mais este. Há muita gente que precisa desse dinheiro, que precisa de mais leitores.”
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo

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