quarta-feira, 30 de junho de 2021

 


Marina

 


 


Aninha e suas pedras

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina

terça-feira, 29 de junho de 2021

 


 


 



"A esperança, só a esperança, nada mais, chega-se a um ponto em que não há mais nada senão ela, é então que descobrimos que ainda temos tudo."

José Saramago

Ruínas


Se é sempre Outono o rir das Primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair...
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!
 
E deixa sobre as ruínas crescer heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!
 
Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!
 
Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!... Deixa-os tombar... Deixa-os tombar.
 
(Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade".)

segunda-feira, 28 de junho de 2021

 


 


 



O Galo de Briga e a Águia

(uma fábula de Esopo)

Dois galos estavam disputando em feroz luta, o direito de comandar o galinheiro de uma chácara. Por fim, um põe o outro para correr e é o vencedor.

O Galo derrotado afastou-se e foi se recolher num canto sossegado do galinheiro.

O vencedor, voando até o alto de um muro, bateu as asas e exultante cantou com toda sua força.

Uma Águia que pairava ali perto, lançou-se sobre ele e com um golpe certeiro levou-o preso em suas poderosas garras.

O Galo derrotado saiu do seu canto, e daí em diante reinou absoluto livre de concorrência.

Moral da História: O orgulho e a arrogância é o caminho mais curto para a ruína e o infortúnio.

sábado, 26 de junho de 2021

 


Escrever pode melhorar a saúde mental


Ernest Hemingway disse a famosa frase que os escritores deveriam “escrever com clareza e clareza sobre o que dói” . Embora Hemingway possa não saber disso na época, a pesquisa agora mostrou que escrever sobre “o que dói” pode ajudar a melhorar nossa saúde mental .

Existem mais de 200 estudos que mostram o efeito positivo da escrita na saúde mental. Mas embora os benefícios psicológicos sejam consistentes para muitas pessoas, os pesquisadores não concordam completamente sobre por que ou como escrever ajuda.

Uma teoria sugere que reprimir as emoções pode levar ao sofrimento psicológico . É lógico, então, que escrever pode aumentar a saúde mental porque oferece uma maneira segura, confidencial e gratuita de revelar emoções que antes estavam reprimidas .

No entanto, estudos recentes começaram a mostrar como um aumento na autoconsciência , em vez de simplesmente revelar as emoções, pode ser a chave para essas melhorias na saúde mental.

Em essência, autoconsciência é ser capaz de voltar sua atenção para dentro de si . Ao voltar nossa atenção para dentro, podemos nos tornar mais conscientes de nossos traços, comportamento, sentimentos, crenças, valores e motivações.

A pesquisa sugere que tornar-se mais autoconsciente pode ser benéfico de várias maneiras. Pode aumentar nossa confiança e nos encorajar a aceitar mais os outros . Pode levar a uma maior satisfação no trabalho e nos impulsionar a nos tornarmos líderes mais eficazes . Também pode nos ajudar a exercer mais autocontrole e tomar decisões melhores, alinhadas com nossos objetivos de longo prazo.

A autoconsciência é um espectro e, com a prática, todos podemos melhorar. Escrever pode ser particularmente útil para aumentar a autoconsciência porque pode ser praticado diariamente . A releitura de nossos escritos também pode nos dar uma visão mais profunda de nossos pensamentos, sentimentos, comportamento e crenças.

Aqui estão três tipos de escrita que podem melhorar sua autoconsciência e, por sua vez, sua saúde mental:

Escrita expressiva

A escrita expressiva é freqüentemente usada em ambientes terapêuticos onde as pessoas são solicitadas a escrever sobre seus pensamentos e sentimentos relacionados a um evento estressante da vida. Este tipo de escrita visa ajudar a processar emocionalmente algo difícil .

A pesquisa mostra que a escrita expressiva pode aumentar a autoconsciência , reduzindo, em última análise , os sintomas depressivos , pensamentos ansiosos e estresse percebido .

Escrita reflexiva

A escrita reflexiva é regularmente usada em ambientes profissionais, muitas vezes como uma forma de ajudar enfermeiras, médicos, professores, psicólogos e assistentes sociais a se tornarem mais eficazes em seus trabalhos . A escrita reflexiva visa dar às pessoas uma maneira de avaliar suas crenças e ações explicitamente para aprendizagem e desenvolvimento.

Escrever de forma reflexiva exige que a pessoa faça perguntas a si mesma e seja continuamente aberta, curiosa e analítica. Pode aumentar a autoconsciência, ajudando as pessoas a aprender com suas experiências e interações. Isso pode melhorar as relações profissionais e pessoais, bem como o desempenho no trabalho, que são indicadores-chave de uma boa saúde mental .

Escrita criativa

Poemas, contos, novelas e romances são considerados formas de escrita criativa. Normalmente, a escrita criativa emprega a imaginação, bem como, ou em vez da memória, e usa recursos literários como imagens e metáforas para transmitir significado.

Escrever de forma criativa oferece uma maneira única de explorar pensamentos, sentimentos, ideias e crenças. Por exemplo, você pode escrever um romance de ficção científica que represente suas preocupações sobre a mudança climática ou uma história infantil que explique suas crenças sobre amizade. Você pode até escrever um poema da perspectiva de uma coruja como uma forma de representar sua insônia.

Escrever de forma criativa sobre experiências desafiadoras, como o luto , também pode oferecer uma maneira de comunicar aos outros algo que você acha que é muito complicado ou difícil de dizer diretamente.

A escrita criativa encoraja as pessoas a escolher suas palavras, metáforas e imagens de uma forma que realmente capture o que estão tentando transmitir. Essa tomada de decisão criativa pode levar ao aumento da autoconsciência e da autoestima , bem como à melhora da saúde mental .

Escrevendo para autoconsciência

A autoconsciência é um componente essencial para uma boa saúde mental e a escrita é um ótimo lugar para começar.

Por que não reservar algum tempo para escrever seus sentimentos sobre um evento particularmente estressante que aconteceu durante a pandemia? Ou reflita sobre uma situação de trabalho difícil no ano passado e considere o que você aprendeu com ela?

Se você preferir fazer algo mais criativo, tente responder a esta solicitação escrevendo um poema ou uma história:

Pense em como sua casa revela o momento em que estamos. Sua despensa está cheia de farinha? Você tem novos objetos ou animais de estimação em sua casa para afastar a solidão ou o tédio? O que você pode ver da sua janela que revela algo sobre este momento histórico?

Cada uma dessas instruções por escrito lhe dará a chance de refletir sobre o ano passado, fazer a si mesmo perguntas importantes e fazer escolhas criativas. Gastar apenas 15 minutos fazendo isso pode dar a você a oportunidade de se tornar mais autoconsciente – o que pode levar a melhorias em sua saúde mental.

Fonte: The Conversation

 


 


 


O gosto do amor

Pode-se gostar de uma mulher, mas o beijo, não há como despistar o beijo. Enganar o beijo. O beijo diz se devemos ficar ou não. O jeito do beijo. O temperamento do beijo. O caráter do beijo.

Não se mente o beijo. É como se não houvesse um degrau: é um sopro circulado, uma neblina desenhada, a respiração voltando.


Não é o beijo com medo. É o beijo que me faz beijar de um único jeito. Com o beijo dela. É ela que beija o meu beijo.

Não há mudança de beijo, é um só beijo, que não se interrompe mesmo com a voz ou com o silêncio. É um beijo vírgula do beijo. Um beijo possessivo que anda. Um beijo que não engole.

Um beijo que cede espaço para a mão. Um beijo gentil, não menos apaixonado. Um beijo que deixa a língua ser língua, o dente ser dente, que não cala. Um beijo que fala enquanto beija.

Um beijo que não lava, que leva, um beijo que protege para se expor. Um beijo que é decidido, não arrogante. Não um beijo que conduz, um beijo que informa.

Não o beijo solitário, o beijo viúvo, o beijo desquitado. Não o beijo de provocação, o beijo carente, que poderia ser feito sozinho.

Há beijo que é mais boca do que beijo, um beijo que é mais escova do que esponja, mais pausa do que pouso.

Sei pelo beijo que não volto. Não volto quando é um beijo de quem não chupa, um beijo de quem realmente não foi beijada mesmo beijando, não foi sinceramente beijada, não fechou os olhos pelo beijo, não imaginou o próximo beijo beijando o primeiro beijo.

Não volto quando é um beijo imitando o beijo, simulando o beijo, ensaiando o beijo.


O beijo é a vontade da perna quando o braço cansa, é a vontade da cintura no pescoço. Meu beijo, um beijo que nunca completa a saudade.

Há beijo que boceja no beijo, beijo que lê no beijo, beijo que não beija porque lambe ou sussurra, porque morde ou varre, preocupado em ser outra coisa que não o beijo.

Não gosto do beijo que vai colando selos. Sem língua. Um beijo de afogado. Um beijo sem personalidade, que logo separa o corpo, porque é mais corpo do que beijo.

Se um não está apaixonado, o beijo é uma boca sem ritmo. Uma boca sem repetição. Uma boca sem vizinho, sem ouvido, uma boca acenando porque se esqueceu de seguir.

O beijo é viciado. O beijo não quer ser nada mais do que beijo. O beijo é trocar o parágrafo, não trocar de texto.

O beijo me chama antes do nome. O beijo avança os seios dela. O beijo quase me atrapalha. O beijo vento de seu beijo.

Mas não adianta procurar o beijo que você ama em outra mulher. O gosto do beijo não é o gosto da boca. O gosto do beijo é o gosto do amor.

 

Fabrício Carpinejar, crônica “O gosto do amor” do livro “Para onde vai o amor?”, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2015

Assista ao filme “Terra Sonâmbula”, baseado na obra de Mia Couto


Em meio à devastadora guerra civil de Moçambique, Muidinga, um refugiado órfão, vaga pelo campo em busca de sua mãe.

Seu único companheiro é um velho contador de histórias, e o único guia para encontrar sua mãe é o diário de um homem morto.

Este drama transportador ressalta o poder da imaginação em sobreviver e, por fim, superar a catástrofe da guerra.

A narrativa é embasada no livro homônimo do escritor Mia Couto. O livro foi ganhador do Prêmio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos (1995) e foi considerado um dos doze melhores livros africanos do século XX por um júri criado pela Feira do Livro do Zimbábue.

“Foi reeditado no Brasil pela Companhia das Letras – é um romance em abismo, escrito numa prosa poética que remete a Guimarães Rosa. Couto se vale também de recursos do realismo animista e da arte narrativa tradicional africana para compor esta bela fábula.” WP

A obra foi publicada em Portugal pela Editorial Caminho em 1993.

Revista Pazes

Abaixo, segue o filme:
 

A origem dos seres humanos de acordo com os antigos textos sumérios

Monstro do caos e o deus do sol sumérios. Imagem wikipedia 

A Suméria, ou “terra dos reis civilizados”, floresceu na Mesopotâmia, hoje o Iraque moderno, por volta de 4.500 AEC. Os sumérios criaram uma civilização avançada com seu próprio sistema de linguagem e escrita elaboradas, arquitetura e artes, astronomia e matemática.

O sistema religioso dele era complexo, composto por centenas de deuses. De acordo com os textos antigos, cada cidade suméria era guardada por seu próprio deus; e enquanto os humanos e deuses costumavam viver em harmonia, os humanos serviam aos deuses.

O mito da criação suméria pode ser encontrado em uma tábua em Nippur, uma antiga cidade mesopotâmica fundada em aproximadamente 5.000 AEC.

A criação da Terra (Enuma Elish) de acordo com os tabletes sumérios começa assim:

Quando na altura o céu não foi nomeado,
E a terra por baixo ainda não tinha nome,
E o primitivo Apsu, que os gerou,
E o caos, Tiamut, a mãe de ambos.
As suas águas estavam misturadas,
E nenhum campo foi formado, nenhum pântano foi visto;
Quando dos deuses ninguém foi chamado à existência,
E nenhum tinha nome, e nenhum destino foi ordenado;
Então foram criados os deuses no meio do céu,
Lahmu e Lahamu foram convocados a existir…

A mitologia suméria afirma que, no início, deuses como os humanos governavam a Terra. Quando chegaram à Terra, havia muito trabalho a ser feito e esses deuses trabalhavam o solo, cavando para torná-lo habitável e extraindo seus minerais.

Os textos mencionam que em algum momento os deuses se revoltaram contra o trabalho que eles faziam.

Quando os deuses como os homens…
Aborreceram-se do trabalho e sofreram a portagem
O esforço dos deuses foi grande,
O trabalho era pesado, a angústia era grande.

Anu, o deus dos deuses, concordou que seu trabalho era muito pesado. Seu filho Enki, ou Ea, propôs criar um homem para suportar o trabalho, e assim, com a ajuda de sua meia-irmã Ninki, ele o fez. Um deus foi morto, e seu corpo e sangue foram misturados com barro. A partir desse material foi criado o primeiro ser humano, à semelhança dos deuses.

Vocês massacraram um deus em conjunto.
Com a sua personalidade
Eu removi o seu trabalho pesado
Impus o teu trabalho ao homem.

No barro, Deus e homem
Serão ligados,
A uma unidade reunida;
De modo que até ao fim dos dias
A Carne e a Alma
Que num deus amadureceram…
Que a alma de um parentesco de sangue seja amarrada.

Este primeiro homem foi criado no Éden, uma palavra suméria que significa “terreno plano”. No Épico de Gilgamesh, o Éden é mencionado como o jardim dos deuses e está localizado em algum lugar na Mesopotâmia entre os rios Tigre e Eufrates.

Inicialmente, os seres humanos foram incapazes de se reproduzir por si próprios, mas mais tarde foram modificados com a ajuda de Enki e Ninki. Assim, Adapa foi criado como um ser humano totalmente funcional e independente. Esta ‘modificação’ foi feita sem a aprovação do irmão de Enki, Enlil, e um conflito entre os deuses começou. Enlil tornou-se o adversário do homem, e a tábua suméria menciona que os homens serviam aos deuses e passavam por muitas dificuldades e sofrimentos.

Adapa, com a ajuda de Enki, ascendeu a Anu, onde não soube responder a uma pergunta sobre “o pão e a água da vida”. As opiniões variam sobre as semelhanças entre esta história da criação e a história bíblica de Adão e Eva no Éden.

 

Todos os crédito para SOCIENTIFICA 

STJ manda contar em dobro todo o período de pena cumprido em situação degradante


A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) e confirmou decisão monocrática do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que concedeu, em maio deste ano, habeas corpus para que seja contado em dobro todo o período em que um homem esteve preso no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, no Complexo Penitenciário de Bangu, localizado na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

Esta é a primeira vez que uma Turma criminal do STJ aplica o Princípio da Fraternidade para decidir pelo cômputo da pena de maneira mais benéfica ao condenado que é mantido preso em local degradante. A decisão caracteriza um importante precedente possível de ser aplicado para a resolução de situações semelhantes.

A unidade prisional objeto do recurso sofreu diversas inspeções realizadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a partir de denúncia feita pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro sobre a situação degradante e desumana em que os presos se encontravam. Essas inspeções culminaram na edição da Resolução CIDH de 22 de novembro de 2018, que proibiu o ingresso de novos presos na unidade e determinou o cômputo em dobro de cada dia de privação de liberdade cumprido no local – salvo para os casos de crimes contra a vida ou a integridade física, e de crimes sexuais.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) aplicou a contagem em dobro apenas para o período de cumprimento de pena posterior à data em que o Brasil foi notificado formalmente da resolução da CIDH, porque a resolução não faz referência expressa ao termo inicial da determinação.

Após a decisão liminar do ministro Reynaldo, o MPRJ recorreu para que esse entendimento fosse restabelecido, sob o argumento de que a decisão da CIDH teria a natureza de medida cautelar provisória, motivo que impediria a produção de efeitos retroativos. Ele sustentou essa tese no fato de a resolução mencionada estabelecer prazos para o seu cumprimento.

Eficácia vinculante da d​ecisão da CIDH

Ao julgar o caso na Quinta Turma, o relator lembrou que, a partir do Decreto 4.463/2002, o Brasil reconheceu a competência da CIDH em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), aprovada em 1969. Sendo assim, as sentenças da CIDH são vinculantes para as partes processuais. “Todos os órgãos e poderes internos do país encontram-se obrigados a cumprir a sentença”, declarou.

Reynaldo Soares da Fonseca ponderou que, ao aplicarem a resolução apenas a partir da notificação oficial feita ao Brasil, as instâncias anteriores deixaram de cumpri-la, pois as más condições do presídio, que motivaram a determinação da CIDH, já existiam antes de sua publicação.

No voto, o relator registrou que o MPRJ sustenta a natureza cautelar da medida, que limita os efeitos das obrigações decorrentes da resolução da CIDH para o futuro, mas aponta “para a necessidade de celeridade na adoção dos meios de seu cumprimento, tendo em vista, inclusive, a gravidade constatada das peculiaridades do caso”.

Interpretação mais favorável a que​​m teve direitos violados

Ele destacou que, por princípio interpretativo das convenções sobre direitos humanos, é permitido ao Estado-parte ampliar a proteção conferida por elas. Assim – concluiu –, as sentenças da CIDH devem ser interpretadas da maneira mais favorável possível para quem teve seus direitos violados.

Além disso, o relator ressaltou que as autoridades locais devem observar os efeitos das disposições da sentença internacional e adequar sua estrutura interna “para garantir o cumprimento total de suas obrigações frente à comunidade internacional”, no intuito de diminuir violações e abreviar as demandas internacionais.

Princípio da Frate​rnidade

Durante o julgamento na Quinta Turma, os demais ministros do colegiado destacaram o caráter histórico da decisão. O ministro Ribeiro Dantas ressaltou “a importância e a profundidade do voto”, e afirmou ter certeza de que se tornará um acórdão de referência no tratamento desses temas.

O ministro Joel Ilan Paciornik afirmou que, “numa hipótese onde se detecta flagrante violação a direitos humanos pelas condições degradantes e desumanas existentes em determinados estabelecimentos prisionais, a invocação do Princípio da Fraternidade é extremamente procedente”.

Por fim, o ministro João Otávio de Noronha observou que o voto “consagra um princípio já agasalhado na Constituição Federal [o Princípio da Fraternidade], em que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, afirmou.

Com a decisão unânime da Quinta Turma, o STJ fixou a contagem em dobro para todo o período. Segundo a defesa, o condenado poderá alcançar o tempo necessário para a progressão de regime e o livramento condicional. Essa análise caberá à justiça do Rio de Janeiro. ​​

 

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):RHC 136961
STJ
#contagem #tempo #pena #cumprimento #emdobro #ambiente #degradante
Foto: divulgação da Web

 


sexta-feira, 25 de junho de 2021


“O que gestamos em silêncio precisa ser acolhido e embalado, para no tempo certo - em tempos incertos - dar seus frutos.”

Isabel Mueller
art by Marissa Strickland

 


Leonard Cohen dance me to the end of love

 


 



Ensinar
é um exercício
de imortalidade.
De alguma forma
continuamos a viver
naqueles cujos olhos
aprenderam a ver o mundo
pela magia da nossa palavra.
O professor, assim, não morre
jamais…
 
– Rubem Alves.

Versículo do dia

“Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno.”

Hebreus 4:16

 




“Às vezes a gente pensa que está dizendo bobagens e está fazendo poesia."


Mário Quintana

quinta-feira, 24 de junho de 2021

 


Anseios


Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!

Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!

Tu chamas ao meu seio, negra prisão!...
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!

Não estendas tuas asas para o longe...
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!

Florbela Espanca

 


 


Criança


As crianças ignoram os relógios. Os relógios têm a função de submeter o tempo do corpo ao tempo da máquina. Mas as crianças só reconhecem os seus próprios corpos como marcadores do seu tempo. Se as crianças usam relógios, elas os usam como se fossem brinquedos. Que maravilhosa subversão! Usar a gaiola do deus Chronos como brinquedo de Kairós, o deus do tempo da vida.

As crianças, do jeito como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma… Crianças não são para ser usadas como ferramentas. Elas são para ser gozadas, como brinquedos…

Os olhos, diferentemente do resto do corpo, preservam para sempre a propriedade divina do rejuvenescimento. O sábio é um adulto com olhos de criança.

Janucz Korczak foi um dos grandes educadores do século passado. Foi mansamente com as crianças do seu orfanato para a câmara de gás de um campo de concentração nazista. Ele deu a um dos seus livros, o título Quando eu voltar a ser criança. De acordo com a Adélia Prado, que rezou: “Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande…”.

Quero voltar para as crianças. A razão? Por elas mesmas. É bom estar com elas. Crianças têm um olhar encantado. Visitando uma reserva florestal no estado do Espírito Santo, a bióloga encarregada do programa de educação ambiental me disse que é fácil lidar com as crianças. Os olhos delas se encantam com tudo: as formas das sementes, as plantas, as flores, os bichos, os riachinhos. Tudo, para elas, é motivo de assombro. E acrescentou: “Com os adolescentes é diferente. Eles não têm olhos para as coisas.

Eles só têm olhos para eles mesmos…”. Eu já tinha percebido isso. Os adolescentes já aprenderam a triste lição que se ensina diariamente nas escolas. Aprender é chato. O mundo é chato. Os professores são chatos. Aprender, só sob ameaça de não passar no vestibular. Por isso quero ensinar as crianças. Ensiná-las para que elas se encantem com o mundo. Seus olhos são dotados daquela qualidade que, para os gregos, era o início do pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal.

Tudo é espantoso: um ovo, uma minhoca, um ninho de guaxinim, uma concha de caramujo, o voo dos urubus, o zinir das cigarras, o coaxar dos sapos, os pulos dos gafanhotos, uma pipa no céu, um pião na terra.

Dessas coisas, invisíveis aos eruditos olhos dos professores universitários (eles não podem ver, coitados. A especialização os tornou cegos como toupeiras. Só veem dentro do espaço escuro de suas tocas. E como veem bem!), nasce o espanto diante da vida; desse espanto, a curiosidade; da curiosidade, a “fuçação” (essa palavra não está no Aurélio!) chamada pesquisa; dessa “fuçação”, o conhecimento; e do conhecimento, a alegria!

Rubem Alves, no livro “Do universo à jabuticaba”. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

Fonte: Revista Prosa ,Verso e Arte 

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Ódio?


Ódio por Ele? Não... Se o amei tanto,
Se tanto bem lhe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo o encanto,
 
Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Com um soturno e enorme Campo Santo!
 
Nunca mais o amar já é bastante!
Quero senti-lo doutra, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!
 
Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda!
Ódio por Ele? Não... não vale a pena...
 
Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"

 


Elba Ramalho - Olha pro Céu meu Amor

Quadrilha Moleka 100 Vergonha (Campinense 2016)

Tortura


Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
- E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...

Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
- E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento!...

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!

Florbela Espanca

terça-feira, 22 de junho de 2021

 


 


 


Há um cansaço da inteligência abstracta – Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

Há um cansaço da inteligência abstrata e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo nem inquieta como o cansaço pela emoção. É um peso da consciência o mundo, um não poder respirar com a alma.

Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as ideias em que temos sentido a vida, todas as ambições e desígnios em que temos fundado a esperança na continuação dela, se rasgam, se abrem, se afastam tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por detrás da derrota surge pura a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado.

O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos — a da incarnação disforme do Não-ser. Outras vezes está atrás de nós, visível só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu horror profundíssimo de a desconhecermos.
Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. E o sentimento súbito de se estar enclausurado numa cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo?

E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satan, de que um dia — um dia sem tempo nem substância — se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não-ser.

 

23-3-1930
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. – 340.
 

Velhice, por que não?


Para Vovó a beleza foi um tormento, porque o tempo não se detinha e desde moça seu maior pavor era perder aquele bem supremo. Olhava-se nos espelhos procurando uma primeira ruga, uma primeira dobra. Uma primeira manchinha. Quando chegou aos 60 anos quase morreu de dor, andava pela casa gritando: – Eu odeio fazer 60 anos! Eu não aguento fazer 60 anos!

Não adiantava as pessoas dizerem que parecia nem ter 40, tão conservada.

Argumentavam com ela: – Tente imaginar que você está conquistando a maturidade em vez de perder a juventude; e que um dia vai ganhar a velhice em vez de perder a maturidade. Não é muito mais natural pensar assim? Mas Vovó não aceitava, para ela o natural não era natural: – Eu odeio pensar que estou ficando velha. Não aceito, não aceito, pronto.

As primeiras cirurgias leves tinham-lhe feito bem: removeram um traço amargo, um sinal de cansaço prematuro. Depois seu médico lhe disse: – Vamos deixar a natureza agir um pouco e o corpo descansar. Não abuse.

Ela então foi procurar outros médicos, que faziam suas vontades.

Desafiando o indesafiável e excedendo seus limites, foi entrando no irreal. Mas as ilusões não continham mais o tempo, e o costurado voltava a descoser. Minha Avó foi-se isolando. Apartou-se das amizades, deixou as festas, não gostava mais de ninguém. Começou a delirar reclamando que todo mundo a apontava nas ruas, nas lojas, nos restaurantes: Lá vai aquela velha. Cada vez mais difícil de lidar e conviver, exigia o que ninguém podia lhe dar: o tempo congelado. Aos poucos foi sendo devorada por dentro também. O rosto de minha Avó, de tanto ser remendado, foi-se tornando outro. Mudou o olho, mudou o nariz, mudou o queixo, mudou até a orelha. No fim nada mais nela era dela. (O ponto cego, 1999)

Se quisermos congelar o tempo e nos encerrarmos nesse casulo, estaremos liquidados antes mesmo que a juventude acabe. Seremos a nossa ficção. A realidade continuará à nossa volta, e um dia vamos descobrir que estamos fora dela. Para alguns essa será a crise salvadora. Acabou a invenção de um “nós” fantasmal. Se ainda quisermos viver, não vegetar na prateleira da nossa fantasia, teremos de encontrar nessa aflição o que restou de nossa personalidade. Pois ela é quem vai nos dar consistência e capacidade de crescer até o último raio de lucidez. Assim se pode ter controle, não sobre o tempo, mas sobre o quanto ele vai nos favorecer ou aniquilar. Para entender que maturidade e velhice não são decadência mas transformação, temos de ser preparados para isso. Dispostos a encarar a existência como um todo, com diversos estágios, variadas formas de beleza e até de felicidade. Acreditar que com cuidado e sorte poderemos ser atuantes mesmo décadas depois: isso tem de ser conquistado palmo a palmo. Porém já na infância nos preveniam de que logo adiante algo de mau nos esperava: “Quando tiver a minha idade, você vai ver”, diziam mães, tias, avós. “Aproveite agora que é criança, quando crescer acaba a festa!”, aconselhavam com laivos de despeito. “Estou muito velha pra essas coisas”, protestavam na hora de se divertir ou alegrar. Existir no tempo nos foi mostrado como uma corrida infausta: cada dia uma perda, cada ano um atraso. Quem não teve seus momentos de querer nunca crescer para não enfrentar aquelas vagas ameaças? Sendo contraditórios – por isso interessantes -, não é estranho que na época em que mais vivemos se fuja tanto disso que se convencionou chamar velhice. E por imaginarmos que nossas últimas décadas são apenas decadência, reforçamos o tabu que reveste essa palavra. Palavras significam emoções e conceitos, portanto preconceitos. Por isso quero falar de minha implicância com a implicância que temos com os vocábulos – e a realidade – velho, velhice.

Detestamos ou tememos a velhice pela sua marca de incapacidade e isolamento. É algo a ser evitado como uma doença. Não deixa de ser tolo encarar o tempo como um conjunto de gavetas compartimentadas nas quais somos jovens, maduros ou velhos – porém só em uma delas, a da juventude, com direito a alegrias e realizações. Pois a possibilidade de ter saúde, projetos e ternura até os 90 anos é real, dentro das limitações de cada período. Quando não pudermos mais realizar negócios, viajar a países distantes ou dar caminhadas, poderemos ainda ler, ouvir música, olhar a natureza; exercer afetos, agregar pessoas, observar a humanidade que nos cerca, eventualmente lhe dar abrigo e colo. Para isso não é necessário ser jovem, belo (significando carnes firmes e pele de seda… ) ou ágil, mas ainda lúcido. Ter adquirido uma relativa sabedoria e um sensato otimismo – coisas que podem melhorar com o correr dos anos. Mas predomina a ideia de que a velhice é uma sentença da qual se deve fugir a qualquer custo – até mesmo nos mutilando ou escondendo.

No espírito de manada que nos caracteriza, adotamos essa hipótese sem muita discussão, ainda que seja em nosso desfavor. Isso se manifesta até na pressa com que acrescentamos, como desculpa: “Sim, você está, eu estou, velho aos 80 anos, mas… jovem de espírito.” Porque ser jovem de espírito seria melhor do que ter um espírito maduro ou velho? Ter mais sabedoria, mais serenidade, mais elegância diante de fatos que na juventude nos fariam arrancar os cabelos de aflição, não me parece totalmente indesejável.
Vou detestar se, ficando velha, alguém quiser me elogiar dizendo que tenho espírito jovem. Acho o espírito maduro bem mais interessante do que o jovem. Mais sereno, mais misterioso, mais sedutor. Assim como não gostei quando certa vez pensando me agradar um crítico escreveu que embora sendo mulher eu escrevia com mão de homem”.

A literatura feita por uma mulher não precisa se socorrer desse aval “mas ela escreve como um homem” para ser boa. Visitei uma artista plástica de quase 90 anos que pinta telas de uns vermelhos palpitantes. E eu lhe disse: “Seus quadros celebram a vida.” Ela respondeu junto do meu ouvido, brilho nos olhos: “Eu os crio para mim mesma, para me divertir.” Seu rosto enrugado e seu corpo já encurvado emanavam uma alegria de viver que me causou a mais confessável das invejas. Por um instante desejei ter chegado, enfim, ao mesmo patamar – onde muitas coisas pelas quais hoje luto e sofro fossem uma celebração tranquila. Uma mulher de 60 anos me pegou pelo braço, me levou para o canto, e sussurrava: “Por que decretaram que mulheres da nossa idade estão acabadas?”, e tinha lágrimas nos olhos. “Não sei”, eu disse, “mas nem você nem eu estamos acabadas, tenha certeza disso. Mudou meu corpo mas eu ainda sou a mesma.” Minha interlocutora era uma bela mulher com filhos independentes e boas amizades. O buraco em sua alma era o da autoestima, porque uma sociedade tola não lhe dava o direito de sentir-se plena, e impunha mesmo à sua mente ativa e capaz o conceito de que agora valia bem menos do que aos 40 anos. E a cada ano, a cada dia, valeria ainda menos. “Eu daria tudo, mas tudinho, por ter a cabeça de agora… no corpo dos meus 30 anos!”, ouvimos.

“Trato bem ao meu corpo, esse grande gato”, escreveu uma poeta com essa sensatez dos artistas e das pessoas simples. “Afinal até aqui ele me serviu, e cada dia gosto mais dele, do jeito que está ficando.” Gostar de seu velho corpo com sua necessidade de cuidados e de amor, de mais treinamento para que funcione direito, de paciência porque nem sempre é como lembro que foi um dia, é uma forma de felicidade que a experiência pode ensinar.


Há poucas décadas alteraram-se nossos prazos, e os conceitos sobre juventude, maturidade e velhice. Passamos a viver mais. Nem sempre passamos a viver melhor. Esse me parece um dos mais extraordinários desperdícios da nossa época. Minhas avós, muito mais jovens do que sou agora, me pareciam – e deviam se sentir – velhas: lentas e vagamente reumáticas, roupa escura, cabelo grisalho, óculos na ponta do nariz, fazendo doces ou tricô. Verdade que minhas avós eram vistas seguidamente com livro na mão – lia-se muito na minha casa. Mesmo assim, para nós crianças eram velhas damas.

Inimaginável que tivessem sido meninas e jovens mulheres. “Vovó transou alguma vez, pelo menos para ter o papai e a titia”, era uma ideia escatológica. Pai e mãe tendo vida amorosa na remota era em que se casaram já nos parecia estranho. Hoje as avós dirigem seu carro, viajam, jantam fora com amigas, namoram, usam computador, e de modo geral parecem muito mais felizes do que as damas de antigamente. Mas, ambíguos como somos, por outro lado mais que nunca viceja o repúdio à velhice. Lembro uma propaganda de televisão mostrando uma mulher idosa de xale nos ombros, rosto murcho e desolado, vagando por um corredor. Abria portas e contemplava os quartos vazios onde sua fantasia fazia ecoar a voz dos filhos, do marido. Era a imagem da pobre velha abandonada que perdeu tudo – porque perdeu a juventude. Não vejo por que em lugar desse sinistro teatro da velhice não se poderia transformar um quarto de filho em salinha de televisão, em ateliê para pintar ou fazer cerâmica, em quarto de hóspedes para convidar alguma amiga a passar o fim de semana… em quarto para os netos. Por que, se um aposento não tem mais utilidade direta, não terei mais direito a ele?

Mesmo que minha casa não esteja movimentada como anos atrás, por que devo me transferir para algum espaço menor – a não ser que eu realmente queira, e decida assim por ser mais prático, mais razoável? Jamais por achar que não preciso, ou pior: não mereço, nem adiantaria mais. Somos seres humanos completos em qualquer fase, na completude daquela fase.

Custa-nos acreditar nisso na velhice, como na adolescência era difícil termos confiança em nós e nossas escolhas quanto ao futuro.

Com direito e dever de procurar interesses e revisar outros, ter alegrias e prazeres, sejam eles quais forem. Posso na velhice não ser um atleta na cama nem mesmo ter atração pela vida sexual, mas sou capaz de exercitar minha alegria com amigos, minha ternura com família, meu prazer em caminhadas, em jardinagem, em leitura, em contemplação da arte. Porém, numa sociedade em que sucesso e felicidade se reduzem a dinheiro, aparência e sexo, se somos maduros ou velhos estamos descartados. Cada dia será o dia do desencanto. Em lugar de viver estaremos sendo consumidos. Em vez de conquistar estaremos sendo, literalmente, devorados pelos nossos fantasmas – na medida em que permitirmos isso. Essa é a nossa possibilidade, a nossa grandeza ou a nossa derrota: viver com naturalidade – ou experimentar como um súbito castigo dos deuses – os novos 70 ou 80 anos. Algumas pessoas parecem tombar subitamente da juventude impensada para a velhice ressentida.

Foram apanhados desprevenidos. Nunca tinham pensado. Estavam desatentos. Triste maneira de percorrer isso que é afinal o milagre da existência.

Imaginamos enganar a máquina do tempo, e suas engrenagens nos atropelaram em lugar de nos impulsionar. Para quem só pensa nos desencantos da maturidade, eu falo no encanto da maturidade. Para quem só sabe da resignação da velhice, eu lembro a possível sabedoria da velhice. É preciso seguir em frente com o meu tempo. Mas qual é, onde está, em que lugar ficou… o meu tempo? Nossos ouvidos estão cheios de refrões, como: “meu tempo já passou”, “eu não devo”, “onde já se viu”…

Perder nos deixa vulneráveis, com medo de que isso se repita. De que o amado nos esqueça, de que o outro morra, de que a graça se apague, a festa acabe. Não queremos essa repetição, não queremos mais perder nada – preferimos nem ganhar coisa alguma. Mas se escutarmos bem nosso interior, ali está a voz persistente dos momentos alegres e das belas experiências dizendo-nos que viver ainda é possível. Faz uns pequenos sinais discretos, que até demoramos a entender. Uma de minhas mais queridas amigas tem quase 90 anos, e espero pelo fim de semana para tomar com ela, em sua casa aconchegante, o uísque dos fins de tarde de domingo. Sempre temos assunto. Ela sabe de tudo, é informada, é interessada. Não fala preferencialmente de sua saúde, que já não é a de dez anos atrás. Comenta coisas de jornal, política, música. Pergunta pelos amigos. Já não vai ao cinema, mas, como é grande leitora, há mil assuntos para se falar. Ela gosta de rir e nos divertimos muito.

Pensando nela e em outras pessoas assim, questiono se ter 80 anos ou mais será realmente uma condenação ou se pode ser o coroamento de uma vida. Verdade que para haver um “coroamento” é preciso uma estrutura razoável para ser “coroada”. Generosa, de conquistas, de perdas mas igualmente de elaboração e acúmulo. Vivida com gosto e dor, com afetos bons e outros menos bons. O prato luminoso do positivo mais pesado do que o das coisas escuras.

“E da juventude, o que você diz?”, me indagam. Não preciso falar tanto dela porque é cantada e louvada em todos os meios de comunicação, em todos os salões, em todos os quartos. E la é deslumbramento e aflição, crescimento e inépcia, angústia e êxtase como todos os nossos estágios – apenas tudo ali está condensado em intensidade e brilho. Mas não acho que só ela vale a pena, só ela nos avaliza. Como não defendo a ideia de que a maturidade e a velhice sejam melhores. São diferentes. Com seus lados bons e ruins. Idade não dá aval de bondade e graça. O velho sempre bonzinho é um mito, a velhinha doce pode ser comum nos livros de história, mas na realidade é muito diferente.

Eventualmente o velho pode ser um algoz, exercendo sobre a família a famosa tirania do mais fraco, do doente, da criança mimada. Algumas pessoas, envelhecendo, se tornam insuportavelmente exigentes, lamuriosas, difíceis de conviver. Apegadas a um passado com bens, presenças, aparência e atividades que não podem mais ter, não se conformam. Nem sempre o velho fica isolado porque os filhos são ingratos. Muitas vezes ele é que afasta os demais, com sua permanente crítica a tudo e a todos, suas exigências de atenções nem sempre possíveis. Na reduzida família nuclear de agora, em que em geral marido e mulher trabalham, os filhos são poucos, uma empregada custa caro – a assistência ao velho torna-se difícil se ele for dependente.

Boas clínicas são raras e dispendiosas. Grave problema para todos. Cada família o resolverá como puder, em geral com sacrifício financeiro e ônus emocional. “O problema dos velhos é que lhes falta o que fazer, faltam interesses”, a gente diz, como se fosse uma inevitabilidade. Não é inevitável. Por que o velho não pode ter a sua vontade enquanto for independente, enquanto tiver lucidez – maior de todos os bens desde que não signifique apenas lucidez da dor física?

Na idade avançada os interesses não precisam ou não podem ser os de antes: atividade, trabalho, dinheiro, viagens, conquistas. A certa altura mudam as possibilidades mas não se anula a pessoa. O bem-estar e a alegria residem nas coisas mais triviais: esse é um dos aprendizados que o tempo nos dá. Por isso mesmo, a essa altura é mais simples ser feliz. Novos afetos são possíveis em qualquer idade: sempre se podem estabelecer novos laços com pessoas, coisas, lugares, interesses. Nem mesmo amor, ternura e sensualidade são privilégio dos moços. Mas muitas vezes não lhes permitem, aos velhos, a mínima independência, ainda que ela seja totalmente viável: “Que ideia, mãe, sair à rua sozinha!”
“Papai, você está doido, morar sozinho? Viajar sozinho, ir sozinho ao restaurante? Na sua idade… ” Essa é a sentença condenatória: na sua idade, na minha idade. Não perdemos (alegria, saúde, amores): nós os roubamos de nós mesmos. E nos boicotamos adotando frases comuns, como essas: “Estou velha, minhas mãos ficaram feias, não vou usar mais meus anéis.” “Para que comprar um terno novo, se estou velho? Quantas vezes ainda o vou usar?” “Para que comprar vestido novo, para que pintar a casa, para que reformar o sofá, se estou velho?” Então está decretado que os velhos usam calças largas demais, sapatos cambaios, cabelo descuidado, e sentam no sofá puído. Seria bom perguntar em que medida eles mesmos dão força aos rótulos sobre sua idade, adequando-se a esse clichê, ainda que lhes custe muito. Ainda que tivessem outra opção. O tempo tem de ser sempre o meu tempo, para realizar qualquer coisa positiva e plausível – ainda que seja mudar de lugar a cadeira (até a de rodas) e ver melhor a chuva que cai. Uma velha senhora mora sozinha mas curte as amizades, a família, livros e músicas, a natureza. De vez em quando abre uma garrafa de champanha e faz um brinde, sozinha (não chorosa): a coisas boas que teve, coisas boas que tem, e uma ou outra que ainda pretende viver. Um dia lhe manifestei minha admiração por isso. Com um sorriso entre tímido e divertido ela respondeu que sempre havia o que celebrar. Era um privilégio estar viva tendo consciência disso, e sem graves problemas de saúde. Poder apreciar a luz da manhã, o aroma da comida, o perfume das pessoas. Comunicar-se, saber das notícias, que podiam ir do esporte à música, à política, ao… o que eu quiser. Participar ainda. Me enterneceu essa visão positiva de uma mulher ficando velha. Sua idade não era o ponto de estagnação, mas de fazer tranquilamente coisas que antes não podia. Não tinha mais de cumprir tantos deveres nem realizar tantas expectativas.

“Acho que as pessoas são mais condescendentes comigo”, ela disse com um sorrisinho malicioso. “Devem pensar “ela está velhinha, coitada” e assim eu posso finalmente respirar fundo, e ser mais… natural.” Certa vez li uma história mais ou menos assim: Uma jovem corria para ficar em forma. Passou por uma velhinha que cuidava de seu jardim na frente da casa, e gritou ao passar:

— Vovó, se eu fosse magra como você, não precisaria ficar aqui correndo desse jeito! A velhinha a fez parar com um sinal, aproximou-se dela, e lhe disse sorrindo: – Filha, quando a gente fica velha como eu, tudo é mais fácil. A gente pode até se aposentar e gostar de cuidar das rosas.

Mas se sonharmos apenas com a viagem à Lua, cuidar das rosas pode parecer tedioso demais, e não cultivaremos coisa alguma. A vida é sempre a nossa vida, aos 12 anos, aos 30 anos, aos 70. Dela podemos fazer alguma coisa mesmo quando nos dizem que não. Dentro dos limites, do possível, do sensato (até alguma vez do insensato), podemos. Só seremos nada se acharmos que merecemos menos de tudo que ainda é possível obter.

Lya Luft, no livro “Perdas e ganhos”. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Fonte:

Por