Era uma noite de terça-feira, e eles viam televisão deitados na
cama. Quase uma da manhã, estava quente. Ele levantou-se para tomar
água. A casa silenciosa, moravam num bairro tranqüilo. Não havia
ruídos,poucos carros. Ao passar pelo quarto das crianças, resolveu
entrar. Empurrou a porta e encontrou o bicho comendo o menino mais
velho, de três anos e meio. Era semelhante a um lagarto e, na
penumbra, pareceu verde. Paralisado, não sabia se devia entrar e
tentar assustar o animal, para que ele largasse a criança. Ou se
devia recuar e pedir auxílio. Ele não sabia a força do bicho, só
adivinhava que devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte
demais para ele, franzino funcionário. E meio míope, ainda por cima.
Se acendesse a luz do corredor, poderia verificar melhor que tipo de
animal era. Mas não se tratava de identificar a raça e sim de salvar
o menino. Ele tinha a impressão de que as duas pernas já tinham sido
comidas, porque os lençóis estavam empapados de sangue. E a calça do
pijama estava estraçalhada sob as garras horrendas do bicho
repulsivo. Como é que uma coisa assim tinha entrado pela casa
adentro? Bem que ele avisava a mulher para trancar portas. Ela
esquecia, nunca usava o pega ladrão. Qualquer dia, em vez de um
bicho, haveria um homem roubando tudo, a televisão colorida, o
liquidificador, as coleções de livros com capas douradas, os
abajures feitos com asas de borboletas, tão preciosos. Pensou em
verificar as portas, se estavam trancadas. Porém, percebeu um
movimento no animal, como se ele tentasse subir para a cama. Talvez
tivesse comido mais um pedaço do menino. Precisava intervir. Como?
Dando tapinhas nas costas do lagarto — não lagarto? Não tinha antas
em casa e o cunhado sempre dizia que era coisa necessária. Nunca se
sabia o que ia acontecer. Ali estava a prova. Queria ver a cara do
cunhado, quando contasse. Não ia acreditar e ainda apostaria duas
cervejas como tal animal não existia. Pode, um lagartão entrar em
casa através de portas fechadas e comer crianças? Olhou bem. Comer
crianças não era normal, nem certo. Devia ser uma visão alucinada
qualquer. Não era, O bicho mastigava o que lhe pareceu um bracinho e
o funcionário teve um instante d ternura ao pensar naqueles braços
que o abraçavam tanto, quando chegava do emprego à noite. Urna faca
de cozinha poderia ser útil? Mas quanto o bicho o deixaria se
aproximar, sem perigo para ele, o homem? Tinha de impedir o lagarto
de chegar à cabeça. Ao menos isso precisava salvar. Não conseguia
dar um passo, sentia-se pregado à porta. Preocupava-se. Todavia não
se sentia culpado. Era uma situação nova para ele. E apavorante.
Como reagir diante de coisas novas e apavorantes? Não sabia.
Preferia não ter visto o lagarto, encontrar a cama vazia, as roupas
manchadas de sangue. Pensaria em seqüestro ou coisas assim que lia
nos jornais. Seqüestro o intrigaria, uma vez que ganhava pouco mais
de dois salários mínimos e não tinha acertado na loteria esportiva.
Era apenas um funcionário dos correios que entregava cartas o dia
todo e por isso tinha varizes nas pernas. Se gritasse, o lagarto
iria embora? Continuou pensando nas coisas que podia fazer, até que
a mulher chamou, uma, duas vezes. Depois ela gritou e ele recuou,
sempre atento para saber quanto o bicho tinha comido do filho. À
medida que recuou perdeu a visão do quarto. Sentindo-se aliviado,
pelo que não via. A mulher chamava e ele pensou: o menino não
chorou, não deve ter sofrido. Voltou ao quarto ainda com esperança
de salvá-lo pela manhã e decidiu nada dizer à mulher. Apagaram a
luz, ele se ajeitou, cochilou. Acordou sentindo um cheiro ruim e
quando abriu os olhos viu sobre seu peito a pata, parecida com a do
lagarto. Paralisado, não sabia se devia tentar as sustar o animal,
ou tentar sair da cama e pedir auxílio. Pelo peso da pata, o bicho
devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele,
franzino funcionário. Aí se lembrou que tinha dois sacos de cartas a
entregar, era época de Natal e havia muitos cartões das pessoas para
outras pessoas dizendo que estava tudo bem, felicidades. Tinha que
tirar este bicho de cima. Não, hoje não haveria entregas. Nem
amanhã, por muito tempo. O lagarto estava com metade de sua perna
dentro da boca.
Ignácio de Loyola Brandão
O texto acima foi extraído do livro "Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão", seleção de Deonísio da Silva, Global Editora — São Paulo, 1993, pág. 117.
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