Uma das belas gravuras de Gustave Doré para o Quixote
As mortes de Cervantes e Shakespeare
ocorreram no mesmo dia e no mesmo ano, em 23 de abril de 1616. A questão
é complicada e está explicada aqui,
no segundo parágrafo. A fim de homenagear estes dois imensos nomes da
literatura de todos os tempos, em 1995, a XXVIII Conferência Geral da
UNESCO escolheu o dia 23 de abril como o Dia Internacional do Livro e
dos Direitos Autorais. Na data, fica também homenageado outro escritor
falecido naquela popularíssima data de 1616: o historiador peruano Inca
Garcilaso de la Vega, dito o “príncipe dos escritores do novo mundo”. O
23 de abril é tão bem frequentado que William Wordsworth, grande poeta
romântico inglês, também a escolheu para morrer, só que de 1850.
Cervantes é um fundador. Talvez seja isto que nos emocione tanto quando folheamos as páginas do Quixote ou das Novelas Exemplares. Virginia Woolf escreveu em seu diário que sempre derramava algumas lágrimas quando pegava seu exemplar do Quixote.
Eu a entendo. Não sou fácil para chorar, mas as páginas finais do
grande romance foram lidas com extrema dificuldade. As letras
movimentavam-se levemente e às vezes sumiam enquanto eu fungava. Para
quem ama a literatura, parece “forte demais” tomar contato com o
primeiro romance efetivamente moderno, por mais arrevesado que ele nos
pareça hoje. Talvez ele tenha sido um dos primeiros livros escritos
contra outros, trata-se de uma obra escrita com raiva e graça, muita
graça. As últimas edições brasileiras do Dom Quixote e das Novelas, publicadas pela recém falecida Cosac Naify, receberam tratamento digno da comicidade e profundidade cervantinas através do tradutor Ernani Ssó.
Ninguém mais precisa ler as principais obras de Cervantes naqueles
antigos e terríveis textos como os que eu li quando adolescente.
Uma biografia sensacional, ou no mínimo, muito particular
Sabe-se bastante da vida pós-Quixote de
Miguel de Cervantes Saavedra. Antes disso, sua biografia apresenta
largos períodos sem notícias. A começar por seu próprio nascimento. Há
indícios de que nasceu no seu onomástico, em 29 de setembro. O que é
certo é que foi batizado em 9 de outubro de 1547. Também existem dúvidas
sobre onde teria estudado e se. Sabe-se que era alguém muito
indisciplinado, agitado e boêmio, sempre envolvido em querelas pessoais e
atrás de guerras onde pudesse lutar a fim de ganhar algum.
Na verdade, sua vida foi espetacular.
Após um duelo onde feriu seu oponente, fugiu em 1569 para onde hoje é a
Itália, a fim de servir como soldado. Na Batalha de Lepanto, em 1571,
lutando ao lado da Santa Liga (República de Veneza, Reino de Espanha,
Cavaleiros de Malta e Estados Pontifícios), perdeu os movimentos da mão
esquerda — ou a toda a mão, segundo alguns autores. Em 1575, participou
da expedição contra Túnis. Preso por um corsário árabe, passou cinco
anos numa prisão em Argel, junto com um de seus irmãos. Fugiu 4 vezes:
na primeira foi apanhado e posto em um confinamento mais severo. Então,
sua família reuniu algum dinheiro para a fiança, mas o dinheiro apenas
foi suficiente para resgatar um dos irmãos e Cervantes preferiu dar a
liberdade a Rodrigo. Então, libertado, este contratou uma embarcação
para libertar Miguel, mas acabou novamente preso. Na terceira tentativa,
Cervantes foi encontrado dias depois e permaneceu fechado por 5 meses
no banheiro da cela… Na quarta vez, tentou subornar um mouro para
facilitar-lhe a fuga, mas foi delatado. Como pena, o Sultão de Argel o
mandou para uma prisão em Constantinopla. Mas, antes da viagem, dois
frades espanhóis organizaram uma expedição à África e conseguiram, com
auxilio da família Cervantes, pagar seu resgate.
Voltou às guerras entre 1581 e 1583, na
expedição que Filipe mandou aos Açores, contra o prior do Crato, que
pretendia o trono de Portugal. Lá, dirigiu galanteios a uma dama
portuguesa 22 anos mais jovem. Tiveram uma filha, D. Isabel de Saavedra.
Só após o nascimento, em 1584, é que Cervantes desposou legitimamente
D. Catarina de Palácios Salazar y Vosnediano, dama de linhagem fidalga.
De volta à Espanha, escreveu cerca de 30 peças de teatro e seu primeiro livro, A Galateia (1585). Sem êxito e cometendo todos os excessos retóricos que depois condenaria em Dom Quixote,
passou a trabalhar como coletor de impostos. Em 1597, foi preso de
novo, desta vez por dívidas. Tudo indica que foi na prisão que começou
escrever a primeira parte do Quixote.
O Quixote
El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha
é muito diferente de tudo o que se tinha publicado até então. O romance
fala mal dos romances de cavalaria, a moda da época, com suas histórias
totalmente fantasiosas de grandes feitos. Os cavaleiros, super-heróis
da Idade Média, saíam pelo mundo corrigindo toda injustiça. Enfrentavam
sozinhos — e venciam — exércitos tão grandes que fariam corar de
vergonha a Beatrix Kiddo de Kill Bill, assim como Batman e Rambo. Para
atacar tais livros – pois uma ideia genial pode nascer de um desejo de
vingança – , Cervantes criou um grande leitor dos romances de cavalaria:
um fantasioso, louco e esquálido herói, cheio de boas e nobres
intenções, um personagem que fará rir a todos, desde os literatos até a
lírica donzela da Andaluzia que só sonhava com barões e nobres.
Acompanha-o Sancho Pança, uma figura
baixa, gorda e realista, que passa o tempo todo tecendo críticas ao
sublime e ridículo Cavaleiro da Triste Figura. Com seu cavalo Rocinante e
a a musa Dulcineia, estava criado o grupo central do mais engraçado e
melancólico dos romances.
(…) dom Quixote perguntou a Sancho o que o tinha levado a chamá-lo “Cavaleiro da Triste Figura”, justamente agora.
— Foi porque — respondeu Sancho — estive olhando-o um instante, à luz do círio daquele pobre coitado, e realmente vossa mercê tem a pior figura que vi nos últimos tempos. Deve ser por causa do cansaço deste combate, ou pela falta dos molares. (Trad. de Ernani Ssó)
A fantasia do Quixote forma gloriosa e
minuciosa antítese com o ultrarrealismo de Sancho Pança. É na oposição
de Quixote ao senso comum de Sancho que está boa parte da riqueza do
livro. A incrível capacidade do Quixote de adaptar-se às péssimas
circunstâncias e de manter seu idealismo acima da vulgaridade, leva-nos a
acreditar que haja outro senso a lutar contra o marasmo e o comum. Mas
não pensem em Sancho como um personagem desagradável, politicamente
correto ou como “um representante da vulgaridade”, nada disso. Ele é
engraçado e inteligente, estando sempre disposto a piadas e a citar
oportunos adágios populares ou outros, criados por Cervantes. É um
realista.
O livro, publicado em 1605, fez
estrondoso sucesso. Tanto que recebeu uma continuação apócrifa, assinada
por um inexistente Alonso Fernández de Avellaneda, o qual demonstrou
boas doses de incompreensão dos personagens cervantinos e que não podia
ser comparado ao original em qualidade. Então, em 1615, Cervantes
publicou o segundo tomo, onde o falso livro de Quixote é citado no
prólogo.
Valha-me Deus, com quanta gana deves estar esperando agora este prólogo, leitor ilustre ou mesmo plebeu, pensando encontrar nele vinganças, reprimendas e vitupérios contra o autor do segundo Dom Quixote, digo, contra aquele que dizem que foi concebido em Tordesilhas e nasceu em Tarragona! Na verdade não vou te dar esta alegria, pois, ainda que os agravos despertem a cólera nos corações mais humildes, no meu esta regra há de padecer exceção. Tu gostarias que eu o chamasse de burro, de mentecapto e de insolente, mas isso não me passa pelo pensamento: que o pecado dele seja seu castigo, que coma o pão que amassou e faça bom proveito. (Trad. de Ernani Ssó)
Se o primeiro volume já era extraordinário, a continuação é ainda melhor e, ao final deste livro, o autor mata Dom Quixote para que sejam evitados novos abusos e continuações.
Cervantes é o fundador do romance
moderno. No Quixote há personagens que representam ideias e as situações
falam por si, sem a necessidade de maiores explicações do autor.
Atualmente, talvez o livro soe verboso e com longos trechos
desnecessários, mas ainda não foi inventado símbolo melhor do espírito
idealista e aventureiro do ser humano.
Lembro que durante o Fórum Social
Mundial de 2005 falou-se muito no Quixote como representante de uma
utopia. Isto é um grande erro que foi apontado por José Saramago,
presente ao evento. Utopia (palavra do latim moderno, com origem no
grego oú, “não”, e no grego tópos, ‘lugar’), segundo Thomas Morus, é um
local e uma situação ideais; isto é, refere-se a um país e a um governo
imaginário que proporciona excelentes condições de vida a um povo feliz.
Ironicamente, também significa não-lugar ou lugar nenhum… Esta
definição não possui nada em comum com a história do Engenhoso Fidalgo,
um personagem que aplicava a fantasia para transcender a circunstâncias
imediatas e que era destituído de projetos para si ou, melhor dizendo,
que refazia seu projeto cada vez que pensava ou via algo que o
interessasse. Também desiludia-se e “reiludia-se” com extrema
velocidade…
Entre as duas partes de Dom Quixote,
aparecem o genial Novelas exemplares (1613), conjunto de doze narrativas
breves de caráter didático e moral que podem servir de introdução ao
mundo cervantino. Cervantes se ufanava, no prólogo, de ter sido o
primeiro a escrever, em castelhano, novelas ao estilo italiano:
A isso se aplicou meu engenho, a isso me leva minha vocação, e penso, o que é verdade, que sou o primeiro que escreveu novelas em língua castelhana, porque as muitas que andam impressas nela são todas traduzidas de línguas estrangeiras, e estas são de minha autoria, não imitadas nem furtadas; meu talento as criou e minha pena as pariu, e vão crescendo nos braços da imprensa. (Trad. de Ernani Ssó)
Elas são habitualmente agrupadas em duas séries: as de caráter idealista e as de caráter realista. Também escreveu Viagem de Parnaso (1614) e peças teatrais como Oito comédias e oito entremezes novos nunca antes representados (1615). Porém, seu drama mais popular hoje, A Numancia, além de O trato de Argel, ficaram inéditos até ao final do século XVIII. Um ano depois de sua morte aparece a novela Os trabalhos de Persiles e Sigismunda.
Mas o que interessa em sua obra é o Quixote e as Novelas Exemplares. Como dissemos, o êxito de Dom Quixote foi
colossal. A glória e a fama que Cervantes obteve em vida foi imensa
para a época. No primeiro ano esgotaram-se quatro edições. O pequeno
mundo literário espanhol estava em êxtase. Todos queriam conhecer
Cervantes, todos o felicitavam: o conde de Lemos proclamava-se,
orgulhoso, seu amigo e mecenas. Muitos estrangeiros — como os franceses
que vieram na comitiva do embaixador da França à corte de Espanha para
tratar de assuntos de estado — solicitavam, como graça excepcional, o
favor de serem apresentados a ele. Era a glória, aquela que ele antes
procurara nos acampamentos e nos teatros.
Cervantes reformou o gosto de um público
que, após sua obra-prima, nunca mais foi o mesmo. Ele fez ruir um mundo
numa risada colossal. E um novo caos surgiu.
.oOo.
Do Blog do Milton Ribeiro
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