domingo, 3 de abril de 2016

A feiura da pessoa interessante

— E ela é bonita?

Perguntei por perguntar, sou mesmo muito perguntador, mas ele reagiu como se eu tivesse lhe aplicado um choque.

Até aquela altura da conversa, só ele falava, enfático, preenchendo com sua gesticulação desgalhada um vasto espaço em torno, por pouco não me acertando, em sua exuberância, uns involuntários tabefes. O assunto obsessivo era a moça, as inigualáveis qualidades da moça, e para enumerá-las meu amigo se esparramava, equilibrando-se à beira do ridículo. Às vezes empacava, sem palavras para descrever o indescritível, e a empolgação se metamorfoseava em algo que lembrava o ar beatífico, meio abobalhado, de quem, entre os banhistas, despistadamente faz xixi no mar.

          — Bonita? — insisti.

Como num desses programas de TV em que a resposta vai levar à fortuna ou ao infortúnio, ele franziu os lábios numa rosquinha pregueada, apanhou o queixo entre dois dedos, revirou os olhos para o alto, ruminativo — e por fim desembuchou, numa hesitação tamanha que dava para ver uns hifens pingando entre as sílabas:

          — Ela é... interessante.

Bem que eu desconfiava: a moça era feia. Prendada, virtuosa, trabalhadora, o diabo — mas bonita não era. Se fosse, não haveria lábios franzidos, dedos beliscando o queixo nem olhos perscrutando os céus: bonita é bonita, ponto. E interessante — as muito interessantes que me perdoem — está mais para feia. Se a gente recorre a esse adjetivo, é para camuflar uma ausência de formosura.

(Antes que me acusem de machismo: vale também, é claro, para o sexo masculino, só que marmanjo não está socialmente obrigado à formosura.)

Não é tão simples assim, eu sei. No extenso território que vai da beleza à feiura, há de tudo e um pouco mais. Meu avô achava que a balança pendia decididamente para um lado, e me lembro, menino, da observação que fez enquanto esperávamos, no centro de Belo Horizonte, abrir-se o sinal para os pedestres. “Meu filho, como a humanidade e feia!”, sussurrou ele, olhos na manada que, no lado oposto, também engatilhava o bote. Ressentimento? Não, o vovô Santos era um belo homem. Arrogância, também não, pois não lhe faltava compaixão pelo ser humano, aí incluídos os bonitos. Sua observação tinha o corte frio das constatações empíricas.

Talvez num centro de cidade, em países como o nosso, a humanidade, vivendo à margem dos spas, academias e salões de beleza, à margem sobretudo das proteínas consumidas desde o berço, penda mesmo para a fealdade. Mas sempre se podem comparar coisas comparáveis. No centro, como nos redutos ricos, pessoas há que são flagrantemente bonitas e outras insofismavelmente feias. Há também — e aqui a coisa se torna um tanto mais sutil — gente que é bonita-aos-poucos e gente que é feia-aos-poucos.

Não é caso, por favor, de sair correndo rumo ao próximo espelho. Você sabe do que estou falando. Daquelas pessoas que, no primeiro contato, nos parecem feias ou bonitas, e que, com o correr do tempo, às vezes pouquíssimo tempo, vão mudando de lugar em nosso espectro estético. Os olhos não são belos, o nariz é um nariz qualquer e as orelhas, de abano ou com os lóbulos por demais grudados à cabeça — mas, de repente, a reunião desses “aparelhinhos”, como dizia minha mãe, vai compondo um arranjo potável, daqui a pouco apetecível, quem sabe mesmo, no final da noite, irresistível. Também o contrário pode se passar: a progressiva sem-graceza de um conjunto formado por peças que, individualmente, são irretocáveis — e a pessoa que nos parecia linda vai assumindo um feiume tão insuspeitado quanto inapelável, até tornar-se, no máximo, interessante. Mais do que com os “aparelhinhos”, num caso como no outro o ajuste de foco tem a ver com encantos imateriais, imponderáveis — com a presença, quase sempre, do misterioso atributo que se chama borogodó, invisível para os olhos. Razão pela qual devo insistir: inútil você sair correndo para conferir no espelho.



Humberto Werneck

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