Digamos que você trabalhe demais e não
tenha tempo justamente para cuidar do tempo que sobra, se é que sobra
algum tempo. Então você deixa que uma empresa cuide disso pra você. Se
você já se aposentou ou não tem trabalho, pode parecer difícil usar o
tempo com outras coisas e você também aceita os serviços da empresa.
Como você vive em uma sociedade que
valoriza a informação, e a empresa lhe dá justamente isso, parece lógico
que o que ela fornece é uma coisa boa em troca de uma coisa meio chata
como é a propaganda. Mas parece uma troca justa e você pensa que não tem
porque ver um problema nisso.
Na forma de notícias, a informação é
algo que serve para você saber em que mundo está, saber o que está
acontecendo, e, evidentemente, não ser ingênuo.
Você pensa: não parece lógico que alguém
use informação para te enganar e te tornar ingênuo. Isso não faria
sentido e você se entrega de corpo e alma o que tem pela frente.
No meio disso tudo, você acredita e
confia mesmo no que recebe, afinal se você não está enganando ninguém,
ninguém teria por que enganar você.
E como você é uma pessoa confiante, você
também confia na justiça e sabe que propaganda enganosa pode dar cadeia
e segue vendo tudo de bom que o aparelho que você comprou te oferece de
graça. Quer dizer, é bom lembrar que não é bem de graça, tem aquela
troca, mas isso não vem ao caso agora, pois tudo parece muito justo.
A tecnologia muda de tempos em tempos, o
aparelho fica ultrapassado e você precisa comprar um novo. Você nem
queria esse aparelho último tipo, assim como você não quer as coisas que
ele mostra, mas você passa a usar porque todo mundo está usando. Ficar
longe do aparelho é o que ninguém quer. Ficar desatualizado diante dos
colegas e familiares também pega mal. Assim você que não anda
conversando nada muito interessante com ninguém, sente que ainda faz
parte de uma comunidade que agora é chamada de audiência.
Você parou de falar com as pessoas,
perdeu a noção dos amigos e dos familiares, as pessoas só perguntam se
você viu a novela. É claro que você assitiu tudo, perdeu algum capítulos
dormindo, pois não era tão interessante assim, mas não tem problema
porque o seu mundo emocional está completamente preenchido com as
alegrias e tristezas das personagens.
A sua vida moral, ética e política está
totalmente controlada, já não dá mais trabalho. O aparelho que você
comprou garantiu todas as suas ideias por meio dos noticiários e criou
um verdadeiro estilo de vida para você. Você está convencido de que a
vida não pode ser diferente.
Agora você pode ficar sentando diante do
aparelho vendo pessoas parecidas com você convivendo dentro de uma
casa. Elas parecem mergulhadas na banalidade do dia a dia e você chega,
num descuido, a pensar que elas são meio idiotas. Como não dá para fazer
muita coisa com um idiota, você pode dar um telefonema para expulsar um
deles da casa. Você vai achar essa atitude meio pequena e miserável,
mas como isso fará você se sentir poderoso, você que anda tão sozinho e
meio deprimido e sentindo uma inveja incrível daquelas pessoas, você
digita os números e manda bala.
Em outro belo dia faltou energia
elétrica e você ficou a olhar para o teto tentando dormir. Deu tempo
para desconfiar que estavam querendo, na verdade, te vender esse
aparelho e a programação que ele mostra. Você lembrou que te chamaram de
alienado quando comentou com colegas que não gostava tanto assim de
ficar na frente do aparelho, e que te chamaram de chato por ver problema
onde tudo parecia ir tão bem. Como você não estava pensando como todo
mundo, achou que estava errado e resolveu dormir.
Para compensar, no dia seguinte você
comprou alguma coisa de tudo aquilo que era oferecido na tela. Longe de
ser ingênuo você sabia que não poderia comprar muita coisa porque não
teria dinheiro para tanto. Você sentiu inveja de quem podia comprar
mais, mas comprou o que pode, um carro que te ajudaram a escolher em um
comercial cheio de mulheres lindas. Você fez isso mesmo sem querer ou
precisar porque parecia que era para fazer isso e não queria justificar
para ninguém que poderia ser diferente. O problema do dinheiro se
resolveu em prestações, você relaxou e passou a achar uma vantagem
comprar mais coisas daquelas. É verdade que você se incomodou por estar
endividado, mas alguém te disse que isso faz parte da vida, pois todos
estão endividados como você. Você se incomodou também com a inveja, mas
percebeu que a ostentação, seja o carro, seja da roupa, compensavam
diante dos amigos e aprendeu a conviver com esse novo dado da realidade
da melhor forma possível.
Com o tempo, você começou a notar que as
propagandas eram mais interessantes que as novelas, os programas de
auditório e até os noticiários, afinal o homem que lê as notícias andava
meio repetitivo e insistente mostrando apenas o que parecia dito para
você pensar igual. Você pensou em desligar o aparelho, mas como você
esqueceu que podia fazer outra coisa com o seu tempo, por algum motivo
parece que realmente já não tinha nada de melhor para fazer com ele.
Antigamente, antes de tudo isso, você
pensava que a vida poderia ser diferente. Com o tempo você esqueceu essa
pergunta e se alguém ousa fazê-la hoje, você se irrita muito e é você
que aponta essa pessoa como uma alienada e uma chata. Você fica muito
triste por pensar assim, mas como o ressentimento incomoda muito, você
deixa por isso mesmo.
Como você tem um aparelho novo – e um
carro igualmente novo – você está feliz em pensar que é o último tipo
que estão vendendo nas lojas mais próximas e que as prestações, como as
dores, logo vão passar.
Você vê as novelas, os filmes, os
programas de culinária, humor, entrevistas, está tudo tão bem feito,
tudo tão bonito que você nem precisa de mais nada. Você se identifica
com tudo aquilo que é mostrado. Até parece que não existe outro jeito de
viver. Claro que existe, você pensa, mas daria muito trabalho. Então
você vê as tragédias que aparecem e se auto-compensa pensando que você
não faz parte delas. Alguém diz a você que o mundo é terrível, mas que
ele está do seu lado e não vai deixar você ser enganado. Isso porque
você confia tanto na cabeça que aparece falando na sua frente, aquela
que te dá as informações de graça em troca das propagandas que você vê e
das coisas que você compra, que ele só pode ser um trabalhador honesto
como você que nunca lhe faria mal.
Essa cabeça falante está só mostrando a
vida como ela é, você entendeu. Como ele tem uma audiência ao redor, da
qual você faz parte porque quer, afinal, você escolheu tudo isso, você
não pode se queixar de nada. E como deixar de assisti-la seria ridículo
diante dos seus colegas e familiares, você segue firme e forte usando
agora o controle remoto para escolher entre os trezentos generosos
canais de programação que preenchem o vazio mental, o vazio das emoções,
e o vazio da ação que você poderia sentir. Esses canais te dão a
impagável sensação de poder de escolha. Na verdade eles não tem muita
graça, tanto que você troca de canal a cada segundo, mas você não
imagina que possa haver algo além disso para ver, lá fora, na vida.
O aparelho que te dá todas as
informações que você não precisa, mas aceita, afinal, do cavalo dado não
se olham os dentes, tornou sua vida mais fácil. Você já sabe o que está
acontecendo, por mais que na sua vida nada de interessante esteja
acontecendo. Por um segundo, surge a dúvida quanto à qualidade dessa
vida, mas dura pouco porque não se deve sofrer perguntando coisas desse
tipo.
Quem sabe um dia, seja você que possa
estar ali aparecendo e você finalmente exista como aquelas pessoas
todas. Você chega a fantasiar uma coisa dessas enquanto a inveja – essa
fixação no que é visível – se instaura em sua intimidade. Enquanto isso,
basta tentar pensar como elas, sentir o que elas sentem, fazer o que
elas fazem. Eles decidirão o que você vê pensando que tem todo o
direito, afinal de contas, você terceirizou o seu olhar e com ele o
pensamento, a emoção e a ação.
Elas decidirão o que você vê, o que você
compra, o deus no qual você deve crer, as músicas que você vai ouvir.
Decidirão o seu voto e o regime de governo que vai reger a sua vida.
Vão te informar de tudo o que eles acham
importante ou conveniente para controlar a sua vida tirando de você a
sensação angustiante da liberdade.
Só não vão te informar que você ficou
cego. E que eles deveriam pagar uma grande indenização por anos e anos
de assédio cognitivos e moral. Os danos éticos e políticos são
irreparáveis.
Então, quando você perceber que
implantaram no seu corpo um olho de vidro, que essa prótese não vai
resolver o seu problema de visão, mas vai iludir a todos de que você
ainda vê, você não conseguirá mais saber que está diante da tela do
aparelho. Pensará que é a realidade.
Morto há tempos diante da tela,
transformado em um zumbi que não pensa, não sente e não age em nome de
mais nada que não seja a ordem teleguiada recebida, você será chamado de
“vidiota” por alguém que, por algum motivo, ficou longe disso tudo. Mas
porque já não consegue entender nada, você parte pra cima dele com a
única coisa que restou na sua vida subjetiva, ódio barato e
agressividade sem fim.
Márcia Tiburi
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