quinta-feira, 14 de abril de 2016

O Kafka da era digital

A fazenda de Joyce Taylor, 82 anos, no Kansas, tem sido assediada nos últimos anos, para grande espanto na região, por “agentes do FBI, xerifes federais, cobradores da receita federal, ambulâncias tentando socorrer veteranos-de-guerra suicidas, policiais à procura de crianças desaparecidas”.  Ninguém ali sabe por quê. É uma zona rural, e a cidade mais próxima tem 13 mil habitantes. Levou algum tempo para alguém perceber que isso se devia a um erro básico de mapeamento da Internet.

Quando a gente diz que “está na Internet” pensa o que? Eu penso em algo como uma biblioteca, onde a localização exata de um livro obedece a um código numérico. Tendo o número de código, a gente se encaminha para o andar, o setor, a estante, a prateleira, o volume procurado. Do mais amplo para o mais restrito. É como procurar a cidade, o bairro, a rua, o prédio, o apartamento.

A Internet é um pouco assim, só que mais bagunçada. Todo computador (celular, etc.) tem um endereço IP, que é como um CPF, da máquina que você usa. É um número único, que fica registrado cada vez que a gente conecta em algum ponto. (Teoricamente, é assim que a polícia localiza os pretendentes a malfeitores do ciberespaço – os verdadeiros malfeitores sabem como evitar isso.)

Uma matéria recente de Kashmir Hill no websaite Fusion revela o lado avesso desse processo que parece tão certinho. Explica ele que existem empresas especializadas em mapeamento digital, ou seja, em informar a localização de um endereço IP. Digamos que alguém me mandou mensagens ameaçadoras, ou que me aplicou um conto-do-vigário via Internet, e que eu consegui descobrir o endereço IP do computador original, que fica nos EUA. O que faço? Entro em contato com uma empresa como a “MasterMind”, e ela me diz o endereço onde está essa máquina.

Só que o processo de rastrear a máquina é falível, imperfeito, cheio de buracos. Às vezes chega à precisão de indicar um quarteirão, uma casa. Mais frequentemente, diz apenas: “Este IP está na cidade tal”. Quando ela não consegue saber algo mais específico, diz em que país está, mas para isso precisa fornecer coordenadas (latitude e longitude). O que faz a MasterMind, quando um IP é difícil de rastrear, e sabe-se apenas que está nos Estados Unidos? A companhia indica as coordenadas relativas ao centro geográfico do país. (É o mesmo raciocínio, acho eu, que faz com que quando o computador seja iniciado o mouse apareça exatamente no centro do monitor).

Sempre que um endereço de IP fica difícil de rastrear e sabe-se apenas que está no país, o “país” é indicado pelo seu centro geográfico. Acontece que esse centro, conforme foi calculado pela MasterMind, fica perto da fazenda de Joyce Taylor! O autor da matéria pediu um levantamento desses endereços e encontrou nada menos de 600 milhões de endereços IP que ninguém pôde localizar com mais precisão e jogou para o centro dos EUA, ou seja, para a fazenda da pobre sra. Taylor.

A matéria cita vários outros exemplos dessa nuvem de endereços fantasmas que ninguém sabe onde estão situados mas um cálculo meio descuidado (os próprios diretores da empresa admitiram) acabou empurrando para uma direção física, cheia de gente real, cuja vida começou a ser bagunçada unicamente por conta de um “gatilho técnico”. É o Kafka da era digital. 
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo

A matéria completa, de Kashmir Hill:

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