O kirchnerismo caiu numa disputa eleitoral.
Derrotas nas urnas são contingências normais do jogo político. O lulopetismo
encara a perspectiva de uma catástrofe: a humilhação histórica de um
impeachment sustentado pela maioria esmagadora da população. É diante desse
abismo que seus dirigentes formularam a narrativa do golpe. Ela não se destina
a salvar o mandato agonizante de Dilma Rousseff, mas a resgatar os responsáveis
pelo desastre. "Golpe" é a palavra escolhida para hipnotizar a base
militante petista no pós-Dilma, congelando o debate interno e salvando a
liderança política de Lula.
Os dirigentes petistas não são néscios. Eles não
acalentam a pretensão exorbitante de persuadir a sociedade com o conto de um
"golpe" que segue a Constituição e as leis, num processo definido
milimetricamente pelo STF. Da mesma forma, sabiam que a ofensiva na imprensa
internacional, por meio de entrevistas de Dilma e Lula de denúncia do
"golpe", provocaria irônica perplexidade entre os correspondentes
estrangeiros. Foi pior que o 7 a
1: o governo brasileiro e, por extensão, o próprio país, converteram-se em
objeto de piada e escárnio. Mas isso estava na conta. É uma prestação a pagar
pelo objetivo maior.
Um quarto de século atrás, combativos
parlamentares do PT clamavam pelo impeachment de Collor argumentando que a
legitimidade das urnas não colocava o presidente acima da ordem legal. Se
houvesse hoje um golpe em curso, Dilma recorreria à Constituição para
abortá-lo, invocando perante o Congresso a necessidade de decretação do estado
de sítio. Mas, como o "golpe" não é golpe, a presidente nada
solicitou aos parlamentares que se preparam para apeá-la legalmente. O
público-alvo da lenda do "golpe" é a área de influência do PT. Os
militantes não precisam acreditar na cantiga de ninar. Basta que a assumam como
benevolente autoilusão: um truque capaz de aplacar as angústias de quem
acompanhou uma trajetória de degradação política e ética.
O governo foi escorraçado pela nação,
experimentando o desprezo do povo, o abandono dos empresários, a traição de uma
elite política que compartilhava o poder. Essa narrativa sobre o encerramento
melancólico do longo ciclo de poder do PT solicitaria uma implacável revisão
crítica interna. Seria preciso identificar erros de natureza política,
ideológica e metodológica, para começar outra vez, sobre um mármore limpo. Como
aconteceu com veneráveis partidos europeus, a refundação implicaria uma
renovação na cúpula dirigente. O "golpe" nasceu para cortar essa
hipótese pela raiz. É uma narrativa que serve aos interesses de Lula, mas
sabota o futuro do PT.
Desde a redemocratização, quase todas as
correntes de esquerda no Brasil assumiram posições à sombra do guarda-chuva de
Lula. O controle lulista sobre a esquerda acentuou-se nos mandatos do
ex-presidente, que lançou mão de financiamentos oficiais indiretos para
subordinar os chamados "movimentos sociais" ao Palácio. Contudo, nos
últimos anos, sob os impactos dos escândalos de corrupção e do esgotamento das
políticas de estímulo ao consumo, fragmentos da esquerda (como o Psol e o MTST)
adquiriram autonomia, esboçando desafios à hegemonia lulista. A segunda
finalidade da farsa do "golpe", que complementa a primeira, é
restabelecer uma ordem abalada.
A narrativa de um governo que fracassou
politicamente depois de se associar ao alto empresariado numa vasta trama de
corrupção serve como bandeira para reaglutinações da esquerda longe da sombra
de Lula. Já a narrativa do "golpe das elites" contra o "governo
popular" congela os movimentos de ruptura, reinserindo-os na órbita
lulista. O golpe do "golpe" tem a função de estender o regime de
servidão voluntária da esquerda para além da queda de Dilma. Nesse sentido,
funciona, como se viu nos atos "contra o golpe" do 31 de março.
Demétrio Magnoli
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