Neste espaço, já citei mais de uma
vez um ou outro verso do antológico poema "Canção do Exílio", do
pouco conhecido poeta mineiro Murilo Mendes. Digo "pouco conhecido"
porque a grandiosidade da sua obra é mais do que suficiente para que ele fosse
estudado Brasil afora, mas...
Antes que alguém pergunte, aviso que
não me enganei. Não se trata da célebre "Canção do Exílio" do poeta
maranhense Gonçalves Dias ("Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá");
trata-se de uma das tantas paródias desse poema.
Muitos consideram exageradamente
ufanista a obra de Gonçalves Dias, a qual, talvez justamente por isso, ganhou
inúmeras paródias de grandes poetas brasileiros, quase todas de tom irônico,
crítico etc.
Uma dessas paródias é justamente a
de Murilo Mendes (1901-1975), um autoexilado. O poeta saiu do Brasil em 1953 e
ficou pela Europa até a morte, em Portugal. Murilo Mendes foi professor de
literatura brasileira em Roma e em Lisboa.
Escrita há quase cem anos, a
"Canção do Exílio" de Murilo começa com estes versos: "Minha
terra tem macieiras da Califórnia / onde cantam gaturamos de Veneza". A
correta leitura desses versos exige algum conhecimento geográfico, vocabular e
(ai-jesus!) a aceitação da existência da figura da ironia.
Cá entre nós, a percepção da ironia
nunca foi algo líquido e certo, ou seja, há muita, mas muita gente que leva
tudo ao pé da letra, o que torna impossível a compreensão de figuras como a
ironia, a hipérbole etc.
A ironia consiste basicamente em
dizer algo que, no contexto, assume sentido oposto ao convencional. Quando
Murilo diz "Minha terra tem macieiras da Califórnia", quer dizer que
sua terra (a nossa, o Brasil) NÃO tem macieiras da Califórnia. Obviamente,
nessas inexistentes macieiras que "ficam" no Brasil não cantam
gaturamos, muito menos os de Veneza. O gaturamo é um maravilhoso pássaro
sul-americano...
Então o que quererá dizer Murilo com
esses versos? Qualquer semelhança com a nossa velha adoração gratuita e
deslumbrada pelo estrangeiro não é mera coincidência...
Outros versos do poema confirmam
esse sentimento e a ironia que permeiam a obra. Vejamos este: "Os sururus
em família têm por testemunha a Gioconda". Note o contraste entre a
brasileiríssima palavra "sururu" e "Gioconda". Imaginemos a
cena: a família quebra o pau, e a estrangeira Gioconda, "pendurada"
na sala para indicar bom gosto, "erudição", contempla a baixaria, com
o seu sorriso escarninho, enigmático...
Outra passagem memorável,
intemporal, atual: "A gente não pode dormir com os oradores e os
pernilongos". Oradores (qualquer semelhança com o blá-blá-blá que nos
assola) e pernilongos são postos no mesmo nível: fazem barulho, mas...
E lá vem o grande Murilo Mendes, que
assim encerra o magistral poema: "Eu morro sufocado / em terra
estrangeira. / Nossas flores são mais bonitas / nossas frutas mais gostosas /
mas custam cem mil réis a dúzia. / Ai quem me dera chupar uma carambola de
verdade / e ouvir um sabiá com certidão de idade!".
Como já afirmei diversas vezes neste
espaço, a arte precede a realidade... Note a relação que o Poeta estabelece
entre a carambola e a maçã. E o sabiá? Onde andarão os nossos "sabiás com
certidão de idade"? Já sei: estão no Congresso, no Planalto, nos
executivos e legislativos estaduais e municipais. É isso.
inculta@uol.com.br
Pasquale Cipro Neto
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