sexta-feira, 8 de abril de 2016

O sucesso do fracasso

Há algum tempo uma conhecida tela de Vincent van Gogh, "Rapaz de quepe", foi vendida por 15 milhões de dólares, Nada a estranhar. Um de seus girassóis estava cotado a 35 milhões. O espanto seria do próprio pintor, se pudesse presenciar um desses leilões. Van Gogh morreu em 1890 sem ter vendido um só quadro na vida. Não tinha dinheiro nem para comprar tinta. Perto de morrer, presenteou seu médico (esteve internado num sanatório) com uma tela que foi usada durante anos para tapar buraco num galinheiro. Um sujeito esperto passou por lá e comprou-a por uma bagatela Ficou rico.

Só muito mais tarde, nos anos 30 do século 20, é que fariam de Van Gogh um dos gigantes da pintura moderna. E Inês era morta havia muito. Pode-se dizer que algo parecido aconteceu com o poeta Fernando Pessoa, que vivia de biscates em escritórios contábeis de Lisboa, quase sem nenhum reconhecimento. Só depois de sepulto nos Jerônimos é que foram ver quem era: um dos maiores do século.

E aí me lembro da frase do filósofo espanhol Ortega y Gasset: "O homem é ele próprio e sua circunstância". Transcrevo de memória, a forma podendo ser outra. Caso em que o sujeito pode ter todo o talento do mundo mas não ser favorecido pelo contexto. Pode ter nascido em lugar errado, entre pessoas que não o compreendem, ou até mesmo ter nascido antes da época, distante de seus verdadeiros contemporâneos.

Não é raro que, mesmo batendo contra muralhas de incompreensão, alguns desses estóicos mantenham a pose e a perspectiva. Fernando Pessoa parecia saber que escrevia para o futuro. Stendhal, escritor do século 19, achava que seus leitores estavam no século 20 (e tinha razão). Van Gogh pintou implacavelmente 900 telas em menos de 15 anos, o que seria impensável se ele não alimentasse uma rija fé em si mesmo

Os diários pessoais andam fora de moda, mas em Genebra houve um sujeito que no século passado preencheu 16 mil páginas de cadernos com anotações sobre sua tendência ao fracasso.

Aspirava à filosofia e à literatura, mas nunca teve coragem de se atirar para valer na feitura de um livro: contentava-se com notas, vinhetas, pequenos esboços. Invejava seus amigos que tinham mulher e filhos, mas nunca se casou, apesar das três ou quatro admiradoras que o cortejaram a vida toda. Teve sua primeira relação sexual aos 40 anos. Nem mesmo foi um grande professor, e ele era o primeiro a admitir que suas aulas eram tediosas.

"Irresolução, preguiça, inconstância, abatimento, pusilanimidade", escrevia ele aos 34 anos a.respeito de si mesmo. Aos 51: "A indecisão crônica esterilizou todas as minhas faculdades". E aos 60, no ano de sua morte: "Os vaivens da ilusão, as incertezas do desejo, os sobressaltos da esperança dão lugar à resignação tranqüila". Em suma, considerava-se um fracasso consumado e parecia ser isso mesmo. Cuidava apenas de morrer sem mágoa. Nem obra, nem filhos, nem reconhecimento público. Conformismo, só isso.

Mas estava enganado. O genebrino Henri-Frédéric Amiel não estava destinado ao esquecimento, como supunha. Mal o sepultaram, seu diário começou a bater asas. Uma daquelas quatro amigas compilou e publicou urna primeira edição. O livro despertou uma enorme simpatia do público. Os milhares de leitores logo saltaram para milhões e hoje o livro está traduzido em todas as línguas cultas. É um clássico.

Ou seja, o repositório dos fracassos de Amiel, seu diário secreto, tornou-se o vetor de seu sucesso. Do ponto de vista histórico, Amiel é um vitorioso, assim como Van Gogh, Pessoa e Stendhal. Aqui no Brasil podemos dizer o mesmo de Lima Barreto e Sousândrade, escritores que não foram reconhecidos em suas épocas. O chato é que, para o artista morto, a vitória póstuma não existe, salvo se ele puder contemplar seus ouropéis de onde estiver (caso esteja) Mas é muito possível que, se assim for, já não dará importância à feira de vaidades armada por marchands, editores e leiloeiros.


Eustáquio Gomes

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