O Golpe na educação começou em 1964. A
repressão aos professores, àqueles que tinham um pensamento crítico,
progressista ou simplesmente livre, foi violenta. Da cassação à tortura,
os professores foram humilhados de todas as formas. Sobreviveram, mas
sob as piores condições.
Como professora de filosofia, eu sempre
disse aos meus alunos que eu só podia falar o que falo, tratar de
conteúdos críticos nas nossas aulas, porque não estávamos mais na
ditadura.
Bom lembrar que a filosofia se tornou
disciplina obrigatória no governo Lula depois de o governo FHC ter
evitado que ela retornasse ao currículo do Ensino Médio.
É sempre bom saber quem apoia e de quem
não apoia a filosofia na escola, porque ela é uma parte essencial da
formação das pessoas. A filosofia é importantíssima em qualquer escola
em qualquer tempo. Não é a toa que, dentre as disciplinas humilhadas
pelo sistema repressor, pela ditadura, a filosofia ficou sempre entre as
mais humilhadas. Justamente por dar muito poder às pessoas. Por
deslocar o sentido do poder, da força para a reflexão. O poder do
pensamento, da análise, da crítica, do questionamento que, por isso
mesmo, ameaça os poderosos e seus sistemas de verdades dogmáticas e
prontas.
Desde que estamos vivendo esse novo
golpe, esse golpe muito baixo, desde que o autoritarismo usurpou o
governo, estuprou a democracia e a lançou em coma num quarto escuro da
história, eu penso no que acontecerá com os professores de filosofia que
inevitavelmente fazem política ao lecionar em nome do pensamento lúcido
e crítico.
Quem não entendeu que a filosofia é uma
política do pensamento, não entendeu nada de filosofia. Mas isso é
assunto para outro momento.
Professores e escolas humilhadas
A profissão de ensinar, da qual qualquer
pessoa poderia se orgulhar, é tratada desde a ditadura militar, essa
que ressuscita agora sem ajuda de militares, como motivo de vergonha
para muitos. Os professores são humilhados pelo capitalismo por meio de
salários cada vez mais baixos. Sabemos que uma das armas do extermínio
capitalista é o salário das pessoas. A dignidade fica ameaçada quando,
num contexto em que a materialidade da vida está ameaçada por falta de
condições, não se tem, por exemplo, dinheiro para pagar a conta de luz e
é preciso comprar um livro.
A educação é tratada desde a ditadura
militar em sua aliança com o capitalismo como algo supérfluo, como
mercadoria, não como um direito das pessoas, sobretudo dos jovens, mas
como um luxo que pode adquirir aquele que pode tem dinheiro para pagar.
Espera-se de quem quer ser professor que seja herói ou que desista e
procure coisa melhor para fazer. No senso comum não se diz de um
professor que é alguém que não trabalha? É uma brincadeira de mau gosto,
mas ela expressa a estupidez do senso comum, cruel como o sistema
econômico e político que o administra por meio dos pensamentos prontos.
Infelizmente, muitas pessoas são lavadas
por pensamentos prontos. Elas perderam a noção de sociedade. Perderam a
noção de ética e de política. Não imaginam que um projeto transformador
de país precisa de um projeto de educação transformador. (Desvalorizar o
trabalho intelectual é essencial para que a burrice vença de vez. Bom
lembrar que o trabalho intelectual é um trabalho concreto como outro
qualquer, exige esforço físico e psíquico, inclusive e muitas horas de
dedicação e produz materialidades. Mas isso também é tema para outra
hora)
A repressão é promovida por indivíduos
que agem em nome do sistema econômico e político. Aquilo que para o
indivíduo autoritário em sua versão fascista é uma espécie de prazer em
humilhar, para o sistema é certeza de lucro a curto, médio e longo
prazo. O sistema conta com esse sacerdote, essa pessoa que adere a ele.
Mas o projeto é sistêmico, não podemos culpar indivíduos.
Nesse contexto, o que se projeta é a
privatização almejada pelas economias neoliberais. Para quem não sabe o
que é neoliberalismo, uma palavra muito usada e pouco analisada, podemos
usar uma definição básica: neoliberalismo é um projeto de rebaixamento
de tudo o que é ético e político ao econômico, de tudo o que é humano à
mercadoria. No neoliberalismo a sociedade tem que viver em competição, e
os que tem poder econômico devem vencer. Não há nenhum problema em ser
vencedor, e nenhum problema em ser vencido do ponto de vista neoliberal.
Por que os vencidos economicamente não contam no projeto de lucro
geral. O problema é deles se morrerem de fome, sem escola, sem saúde.
Para que fique tudo bem, a ideologia que se deve implantar é a do
individualismo e da meritocracia. E cada um deve acreditar que tem o
mérito e a força – ou que não os tem e desistir logo – e que pode ser
melhor do que os outros. Deve também pensar que direitos são inúteis e
que o que realmente importa é o vigor pessoal e a capacidade de
competir.
Falar disso cruamente não seria bom para
o neoliberalismo. Por isso, muito se irritam com esse tipo de fala. O
povo poderia se revoltar se soubesse que está marcado para morrer aos
poucos. Convenhamos, é uma morte lenta a que se produz pela
desigualdade. A morte rápida também ajuda. A morte de jovens negros e de
indígenas, de pessoas trans, de travestis, de mulheres, faz parte da
programação de matança geral dos indesejados para o sistema.
No nosso caso ela começou há muito tempo e persiste até agora.
Além disso, o Brasil sempre foi colônia e
não perdeu esse dever inconsciente de servir ao estrangeiro que hoje
fica claro nas formas de entreguismo econômico cada vez mais radical.
Mas sobre isso também é preciso falar com mais tempo.
A educação ocupada
No meio disso tudo, os estudantes secundaristas em 2016 por todo o
Brasil nos fazem ver uma luz no fim do túnel. O que eles nos mostram é
algo simples: se a educação foi abandonada agora ela precisa ser
ocupada.
Ontem, como hoje, os estudantes movem-se
contra o golpe. Tentam salvar a educação salvando as escolas. Para
isso, usam uma tática pacífica muito atual chamada ocupação.
A tática da ocupação é corporal, territorial e geopolítica.
Ora ocupamos aquilo que queremos
questionar, ora ocupamos aquilo que queremos salvar. A escola nunca foi
um paraíso, mas a ocupação dos estudantes, em qualquer tempo e lugar,
tem o poder de ressignificar a educação para eles mesmos, para os
professores, para a sociedade como um todo.
Ontem fui à Ocupação da Escola Clélia
Nanci, em São Gonçalo. Escolhi ir até lá porque era longe e fora dos
circuitos mais acessíveis. A ocupação é sempre geopolítica e é normal
preferir acessos mais fáceis. Mas a educação é também uma metáfora e uma
“escola longe de nós” é mais ainda. Precisamos nos aproximar e para
isso é preciso deslocar.
Eu quis estar lá. Espero que eu tenha
contribuído com aqueles estudantes heroicos que lutam por sua escola,
por sua instituição tão longe de quaisquer holofotes, longe de atenções,
ocultados pela grande mídia que atualmente faz o papel anti-educativo
de desinformar.
Lá na Ocupa Clélia tivemos uma aula de
filosofia geral e de filosofia feminista com estudantes interessados e
atentos. Éramos poucos e, felizes, realizamos o diálogo filosófico. Para
mim, inesquecível.
Márcia Tiburi
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